Vacina de Oxford/AstraZeneca: sucessão de erros põe em xeque resultados
Estudos clínicos com falhas lançam uma névoa de incertezas sobre o imunizante e podem atrasar sua aprovação.
Na segunda-feira (23/11), a farmacêutica AstraZeneca fez um anúncio que foi muito comemorado no mundo todo. A análise preliminar de sua candidata à vacina contra a covid-19, desenvolvida em parceria com a Universidade de Oxford, na Inglaterra, revelou uma taxa de eficácia que variou entre 62% e 90%.
Passados alguns dias, a análise mais cuidadosa dos dados apresentados apontou uma série de dúvidas, inconsistências e erros relacionados ao estudo clínico de fase 3, a última etapa antes da aprovação pelas agências regulatórias.
"Eu estou absolutamente chocada com o que aconteceu. Isso jamais poderia ter ocorrido", lamenta a imunologista Cristina Bonorino, professora titular da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (RS).
Tudo começou a partir da curiosidade a respeito da própria taxa de eficácia. Como explicar essa variação de 62% a 90%? A justificativa da empresa foi que uma parte dos voluntários recebeu um esquema especial das doses.
O protocolo inicial era que todos os milhares de participantes ganhassem duas doses iguais da vacina. Só que uma parcela deles acabou tomando apenas metade da primeira dose, seguida de uma dose inteira alguns dias depois.
Curiosamente, essa variação na dosagem foi capaz de oferecer uma proteção maior (calculada em 90%), enquanto o protocolo previamente divulgado, de doses homogêneas, atingiu uma taxa de eficácia de 62%.
O grande problema é que esse esquema novo (meia dose + dose inteira) não estava prevista no planejamento. E executivos da AstraZeneca admitiram nos últimos dias que isso aconteceu porque causa de um erro da empresa contratada para conduzir parte do estudo clínico.
O que explica a diferença de 62 e 90%?
A AZD1222, nome oficial da vacina, é feita a partir de um vetor viral não-replicante, uma tecnologia absolutamente nova.
Em resumo, os cientistas utilizam a "casca" de um adenovírus, um tipo de vírus que não tem capacidade de se replicar em nosso organismo ou prejudicar a saúde. Dentro dele, são colocadas as informações genéticas do Sars-CoV-2, o coronavírus responsável pela pandemia atual.
O objetivo é que essa formulação seja reconhecida pelo sistema imunológico, que, a partir daí, gera uma resposta protetora contra uma infecção de verdade.
Além do produto de Oxford/AstraZeneca, outras duas instituições que estão mais avançadas nos testes clínicos apostaram nessa mesma estratégia em suas vacinas: a farmacêutica americana Johnson & Johnson e o Instituto Gamaleya (responsável pela Sputnik V), da Rússia.
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Mas, afinal, o que poderia justificar essa variação de 62% a 90% nas taxas de eficácia desse imunizante? Os especialistas especulam que isso teria a ver com o tipo de adenovírus utilizado.
Inofensivos na grande maioria das vezes, os adenovírus são extremamente comuns no ambiente. Portanto, é natural que nosso sistema de defesa já tenha lidado com cepas dele algumas vezes durante a vida e gerado algum tipo de resposta imune.
A vacina de AstraZeneca/Oxford utiliza um adenovírus de chimpanzé em sua formulação. Pode ser que, no esquema das duas doses completas, tenha acontecido algum tipo de reação cruzada nos voluntários e o corpo deles neutralizou a vacina antes que ela tivesse todo o efeito esperado. Isso poderia explicar a taxa de eficácia de 62%.
Na contramão, ao aplicar a primeira dose pela metade, o imunizante seria mais "tolerado" pelas células de defesa, cumprindo melhor seu papel de gerar proteção contra o coronavírus. Daí viriam os 90% de eficácia obtido nesse grupo.
Vale reforçar que essa é apenas uma teoria, que ainda precisa ser comprovada cientificamente.
Essa precaução com uma eventual "reação cruzada" pode ser observada também nas outras candidatas.
O Instituto Gamaleya, por exemplo, variou o tipo de adenovírus na primeira e na segunda dose da Sputnik V. Já os estudos clínicos da Johnson & Johnson avaliam atualmente a possibilidade de obter proteção contra a covid-19 com apenas uma dose, numa tentativa de evitar essa exposição dupla ao adenovírus
Primeira mancada
"O protocolo estabelecido era que todos os voluntários receberiam duas doses cheias. Daí, na segunda-feira, ficamos sabendo que 2.800 pessoas tomaram meia dose e depois uma dose inteira", rememora a microbiologista Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência. Enquanto isso, 8.900 participantes fizeram o esquema completo, como estava previsto.
Em entrevistas ao The New York Times e à Reuters, diretores da AstraZeneca admitiram que houve realmente um erro da empresa contratada para administrar as doses no estudo clínico que está sendo conduzido especificamente no Reino Unido.
Com isso, parte dos voluntários (aqueles 2.800 citados anteriormente) ganharam apenas metade do volume estipulado na primeira dose.
Ao notar o erro, a empresa logo informou os órgãos reguladores. Por meio de uma nota encaminhada pela assessoria de imprensa à BBC News Brasil, a farmacêutica diz que recebeu a liberação para continuar a pesquisa normalmente, apesar do percalço:
"Essa constatação foi apresentada pelo time de estudo da Universidade de Oxford e revisada pelo Comitê Independente de Monitoramento de Segurança e Dados e pela agência reguladora do Reino Unido (MHRA), e ambos aprovaram a continuação deste regime de dosagem do ponto de vista clínico e científico, sendo publicamente afirmado pela agência a confirmação de que 'não haviam preocupações nesse sentido'. Todas as demais autoridades regulatórias foram informadas de que continuaríamos a monitorar e estudar essa população específica no estudo de Fase II/III no Reino Unido."
Os especialistas criticam que a notícia relevante tenha sido divulgada apenas para as autoridades e para investidores e acionistas da AstraZeneca. "Foi uma conduta irresponsável e nada transparente. Eles não foram claros e, quando as taxas de eficácia vieram ao público na segunda-feira, não se justificaram prontamente", avalia Pasternak.
A neurocientista Mellanie Fontes Dutra, coordenadora da Rede Análise Covid-19, também aponta uma falha na forma em que esses resultados preliminares estão sendo divulgados. "Infelizmente, ficamos sabendo das informações por meio de comunicados à imprensa. Precisamos que os dados completos sejam disponibilizados para que a gente possa entendê-los de verdade", afirma.
Mais controvérsia pela frente
Outros fatos vieram à tona nas últimas horas e lançaram mais dúvidas sobre as taxas de eficácia divulgadas. Todos os voluntários que receberam o esquema diferente (meia dose + dose completa) tinham menos de 55 anos. "Nós sabemos que a população idosa costuma responder de forma diferente à vacinação. Portanto, não incluir essa faixa etária é bastante problemático", acredita Dutra.
No anúncio de segunda-feira, a AstraZeneca também afirmou que as taxas de 62% e 90% permitiram calcular uma eficácia média de 70%. Mais uma vez, os especialistas discordam. "Isso é ridículo. Não dá pra obter essa média a partir de dois grupos tão distintos", avalia Pasternak. Pelas informações divulgadas até o momento, é impossível saber como é que a empresa chegou a esse número.
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Vale destacar ainda que os responsáveis por essa vacina fizeram diversos protocolos de estudo em vários países. No Reino Unido, por exemplo, metade dos participantes recebeu o imunizante contra a covid-19, enquanto a outra parcela tomou uma vacina contra a meningite (que não tem ação alguma contra o coronavírus). Já no Brasil, uma etapa dos testes clínicos foi feita com placebo, substância sem nenhum efeito terapêutico.
"Quando você faz estudos diferentes, como é o caso aqui, não dá pra juntar todos os resultados numa mesma análise. Isso é ciência ruim. Precisamos ver os dados separadamente", conclui Bonorino, que também faz parte do comitê científico da Sociedade Brasileira de Imunologia.
Não é o fim da linha
Apesar de todas as controvérsias, não dá pra descartar o progresso feito até aqui: a vacina de Oxford/AstraZeneca continua como uma forte candidata nessa corrida. Uma eficácia de 62%, aliás, não é necessariamente uma má notícia. "Esse é um número perfeitamente aceitável", aponta Pasternak. Há alguns meses, a própria Organização Mundial da Saúde estabeleceu como meta uma taxa mínima de 50% nos imunizantes contra a covid-19.
Depois dos anúncios de Pfizer/BioNTech e Moderna, cujos imunizantes superaram os 90% de eficácia, uma taxa 30 pontos percentuais mais baixa até parece frustrante à primeira vista.
Mas a candidata de Oxford e AstraZeneca traz vantagens importantes em relação a suas concorrentes: pra começo de conversa, ela é mais barata e mais rápida de fabricar. O planejamento da farmacêutica, inclusive, é entregar 3 bilhões de doses ao longo de 2021, quantidade de poderia cobrir um quinto da população mundial.
Outro ponto positivo está em seu armazenamento: ela permanece estável em geladeiras comuns, sem necessidade de equipamentos rebuscados e menos acessíveis, como acontece com os produtos de Pfizer/BioNTech e Moderna.
Do ponto de vista do Brasil, outro trunfo está no acordo assinado pelo Governo Federal, que garante a produção de doses no próprio país pelo Instituto Bio-Manguinhos, ligado à Fundação Oswaldo Cruz. Isso significa que, se essa vacina se mostrar segura a eficaz, ela poderá chegar mais rápido à nossa população.
Próximos passos e aprendizados
Tudo indica que o imunizante de Oxford/AstraZeneca precisará passar por novos estudos antes de ser liberado pelas agências regulatórias. Os próprios responsáveis pelo produto admitem isso na nota enviada à BBC News Brasil. Eles também dizem que vão divulgar mais detalhes sobre os dados:
"Dada a alta eficácia que vimos agora com os diferentes regimes de dosagem, que é um resultado alinhado com os objetivos de um estudo de fase II/III, há forte evidência em continuar a investigar e entender esses achados a fim de estabelecer o regime de dosagem mais eficaz para a vacina. Estamos discutindo com agências regulatórias em todo o mundo para avaliar esses resultados e esperamos a publicação dos resultados detalhados revisados por especialistas independentes, que agora foram submetidos a publicação em revista científica."
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Diante de tantas polêmicas, será que é possível tirar algum ensinamento de todo o imbróglio? "Espero que os responsáveis pelas vacinas aprendam como é importante se comunicar com transparência, e não priorizar os investidores em detrimento da população", raciocina Pasternak.
Dutra entende que essa lição se estende às outras competidoras, cujos resultados devem ser divulgados nas próximas semanas. "É o caso de Sinovac e Instituto Butantan, responsáveis pela CoronaVac. Eles precisam ter muita responsabilidade e minimizar ao máximo qualquer ruído que possa levar a mais polarização e desconfiança", conclui.
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