'EUA não se meteriam se houvesse tentativa de golpe no Brasil hoje', diz brasilianista
A volatilidade no cenário político brasileiro atual só é comparável ao que o Brasil enfrentou nos anos 1960, quando houve a renúncia de um presidente eleito, Jânio Quadros, e a derrubada de seu sucessor do poder, João Goulart, por um golpe militar, cujos efeitos se perpetuariam por mais de duas décadas.
Essa é a opinião de Peter Hakim, um acadêmico americano especialista em América Latina que nos anos 1960 passou uma temporada no Brasil. Ex-professor do MIT e da Columbia University, Hakim é presidente emérito do think tank Inter-American Dialogue, baseado na capital americana Washington D.C., e dedicado a estudos para fomentar a governança democrática, o desenvolvimento econômico e a igualdade social na região.
No dia em que o golpe militar completa 57 anos, Hakim vê o Brasil "à beira do caos", mas não aposta que os militares brasileiros embarcariam em uma nova empreitada de tomada do poder e manutenção no governo por décadas, como fizeram no século passado.
Para ele, tanto a demissão do Ministro da Defesa, Fernando de Azevedo e Silva, como a substituição do comando das três forças militares, nos últimos dias, indicam que os militares não estão satisfeitos com a condução do presidente Jair Bolsonaro de sua relação com as Forças Armadas. Se fossem extrapolar suas funções institucionais, os militares pressionariam os atores políticos a agir, mas não tomariam pra si a ribalta, aposta Hakim.
Diante de um hipotético cenário de golpe, o estudioso também é categórico em dizer que os EUA tomariam posição muito diferente daquela que adotaram em 1964. Em meio à guerra fria, o governo do democrata Lyndon Johnson apoiou a empreitada dos militares para por um fim à democracia no país.
A justificativa era que a medida afastaria o risco de uma ameaça comunista atingir o maior país da América do Sul. Agora, diz Hakim, a atenção dos EUA em relação à América Latina é muito menor do que era na época. Prova disso é o que ele considera como relativa inação dos americanos diante dos acontecimentos dos últimos anos na Venezuela e dos últimos meses no Haiti.
"Eu não acredito que os EUA se envolveriam de qualquer maneira em uma tentativa de golpe no Brasil hoje. Nem para apoiá-la, nem para freá-la. A verdade é que hoje os americanos não têm tanto interesse na região quanto já tiveram antes", diz o estudioso.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - Havia uma expectativa no Brasil de que veríamos uma reforma ministerial em breve, mas as mudanças no Ministério da Defesa e no comando das três forças militares foram uma surpresa. Como o senhor avalia esse movimento do presidente Bolsonaro?
Peter Hakim - O Brasil parece estar à beira do caos, e essa mudança toda é só um dos eventos que indicam isso. A gravidade da pandemia no país, que o presidente Bolsonaro parece querer continuar ignorando, o acumulado de seis ou sete anos de queda econômica, o retorno de Lula à cena política como um forte candidato à esquerda. Então o Brasil está tão fragilizado em tantas frentes que a saída do ministro da Defesa não chegou a ser tão surpreendente necessariamente.
Muito diferente, no entanto, foi a demissão dos três comandantes das Forças Armadas. Isso não é usual e mostra que eles estão bastante descontentes com o modo como Bolsonaro vem conduzindo as coisas, com as atitudes dele de chamar as Forças Armadas de "meu exército", como tem feito.
BBC News Brasil - O Brasil passou por um golpe militar em 1964 que levou a uma ditadura de duas décadas no país. O senhor vê o risco de uma quebra da ordem institucional agora?
Hakim - Eu não vejo um risco ou a possibilidade de os militares tomarem o poder para exercê-lo por meses ou anos, como fizeram nos anos 1960. Nós não estamos mais nos anos 1960, afinal. O que pode acontecer é que os militares excedam um pouco seu papel institucional ao exercer algum tipo de pressão no processo político. Algo parecido com o que fizeram recentemente na Bolívia, quando chamaram Evo Morales a renunciar e acabaram conseguindo forçar a saída do presidente. No Brasil, talvez eles pudessem pressionar o Congresso em relação a um processo de impeachment de Bolsonaro. Para mim, o Exército tem mantido algum grau de autonomia em relação ao presidente, ele não o controla.
BBC News Brasil - Há exatos 57 anos, vivíamos o golpe. O fim da democracia brasileira contou com apoio do governo dos EUA na época. Como os americanos lidariam com uma situação de um golpe no Brasil hoje?
Hakim - Eu não acredito que os EUA se envolveriam de qualquer maneira em uma tentativa de golpe no Brasil hoje. Nem para apoiá-la, nem para freá-la. A verdade é que hoje os americanos não têm tanto interesse na região quanto já tiveram antes. Se você observar, as ações do governo Biden até agora se concentram em questões migratórias e em atuar junto ao México e à América Central em relação ao assunto. A crise na Venezuela interessa em alguma medida. E o resto é a tentativa de reduzir a influência da China na região, mas não exatamente interesses diretos e particulares na área.
Temos testemunhado o que vem acontecendo na Venezuela há anos. O país está em frangalhos, há uma ditadura instalada, uma crise econômica e humanitária profunda e o que os americanos fizeram? Som e fúria só. Disseram "todas as opções estão na mesa", mas não usaram quase nenhuma delas. Houve algumas sanções e é isso.
No caso do Brasil, se algo parecido acontecesse, duvido que os americanos iriam inclusive tão longe quanto foram com Nicolás Maduro. Não haveria sanções, nada disso. Observariam, poderiam fazer declarações, mas nada além. Veja o Haiti agora. Temos ali um presidente governando por decretos, uma situação de violência crescente, os americanos teriam condições de fazer qualquer coisa ali, e o que fizeram? Nada.
BBC News Brasil - O Brasil enfrenta crises simultâneas: o maior número de mortes diárias por covid-19 no mundo, a economia em desarranjo, a tensão nos círculos militares. Como o senhor vê o país dentro de alguns meses?
Hakim - Eu diria que o nível de volatilidade que estamos vendo no país nos últimos meses talvez só seja comparável com os anos 1960. O (cientista político) Bolívar Lamounier costumava dizer uma coisa que parece ainda mais verdadeiro nos dias atuais: ao contrário do que acontece com outros países, no Brasil você prevê o futuro distante, mas não tem ideia do que vai acontecer amanhã.
Bolsonaro está em um momento crucial, em que parece sentir que pode perder tudo. Sua escolha é entre se conformar à estrutura política tradicional de poder, a necessidade de expandir mais uma vez gastos com auxílio emergencial, que no ano passado garantiram tanto a retirada da pobreza de parte da população quanto a saúde dos seus índices de popularidade, e o que fazer com as promessas de liberalismo e reforma representadas pelo (ministro da Economia) Paulo Guedes.
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