5 leis que os cidadãos árabes em Israel dizem que são discriminatórias
Por décadas os palestinos israelenses denunciam serem tratados como cidadãos de segunda classe.
Enquanto os olhos do mundo se voltavam para o saldo trágico dos bombardeios na Faixa de Gaza, a eclosão do conflito no Oriente Médio promoveu uma nova frente de violência: a de cidadãos judeus e árabes dentro de Israel.
Em uma semana de escalada do conflito, os ataques de Israel a Gaza deixaram 248 mortos, incluindo 66 crianças, e quase 2 mil feridos. E os foguetes lançados pelo grupo palestino Hamas provocaram 12 mortes em território israelense.
As imagens do Domo de Ferro, o poderoso escudo antimíssil israelense, interceptando foguetes do Hamas rodaram o mundo.
No entanto, "as imagens mais surpreendentes de todas são da violência comunitária dentro de Israel", de acordo com Natan Sachs, diretor do Centro de Política para o Oriente Médio do Instituto Brookings, um centro de estudos com sede em Washington, nos EUA.
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"Isso ameaça arrebentar as costuras do delicado e incômodo equilíbrio entre a maioria judia em Israel e os 21% de cidadãos israelenses que também são palestinos", escreveu Sachs em seu blog sobre o conflito.
"Cidades mistas judias-árabes que deveriam ser exemplos de coexistência, como Acre, Ramla, Jaffa e Lod, explodiram em uma orgia de violência e vandalismo", descreveu Shlomo Ben-Ami, historiador e ex-ministro das Relações Exteriores de Israel.
Nas mais de sete décadas de existência do Estado de Israel, se estabeleceu uma forma de coexistência pacífica entre a minoria árabe e a maioria judia, que não negava o conflito palestino-israelense, tampouco a percepção de discriminação denunciada pelos árabes, mas que canalizava o mal-estar por outros meios, diferentes da violência.
De acordo com o Índice de Democracia de Israel de 2020, 81% dos entrevistados árabes afirmaram que os membros dessa comunidade desejam se integrar ao país e fazer parte dessa sociedade. No entanto, apenas 35% acreditam que o governo de Israel é democrático no que se refere ao tratamento dos cidadãos árabes, o que representa uma queda de 10 pontos percentuais desde 2017.
Nos últimos anos, algumas medidas tomadas pelo Estado de Israel aumentaram a sensação de afronta entre a minoria árabe.
A Adalah, uma ONG que defende os direitos dos árabes em Israel, elaborou um banco de dados que inclui mais de 65 leis que considera discriminatórias em relação aos palestinos.
Embora muitas delas afetem os moradores da Faixa de Gaza e da Cisjordânia, Amjad Iraqi, editor da +972 Magazine e analista do centro de estudos sobre questões palestinas Al-Shabaka, garante que também impactam direta ou indiretamente os árabes que têm cidadania israelense.
Ele acrescenta que muitas destas leis foram implementadas a partir da chegada de Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, ao poder em 2009.
Amir Fuchs, analista sênior do Instituto de Democracia de Israel, contestou algumas destas leis que, na sua opinião, transformam o país que por décadas foi conhecido como a única democracia do Oriente Médio em "uma democracia com defeitos".
"O fato de que todo mundo pode votar, de que qualquer um pode se candidatar ao Parlamento, de que todos podem abrir um jornal e dizer o que quiser, mostra que ainda somos uma democracia, embora tenhamos problemas."
"Acho que não tratamos os árabes como deveríamos", enfatiza.
A BBC News apresenta algumas das leis mais relevantes que os árabes israelenses ou, como muitos preferem ser chamados, os cidadãos palestinos de Israel, consideram discriminatórias.
1. Lei de Cidadania e Entrada em Israel
Aprovada pela primeira vez em 2003 como uma medida de emergência temporária, esta lei impede que cônjuges de cidadãos israelenses obtenham automaticamente vistos de residência e cidadania se forem procedentes de Territórios Palestinos ou de países considerados hostis, como Irã, Líbano, Síria e Iraque.
A norma, que foi atualizada e modificada desde então, estabeleceu depois que essas limitações se aplicam a homens com menos de 35 anos e a mulheres com menos de 25 anos.
"O que esta lei significa na prática é que um cidadão palestino, ao se casar ou ter filhos com alguém da Cisjordânia ou da Faixa de Gaza, não tem o direito de transferir a cidadania para eles imediatamente", explica Amjad Iraqi, analista do centro de estudos palestinos Al-Shabaka.
"É basicamente uma proibição total que veta qualquer pessoa que não seja judia."
Segundo ele, embora haja um mecanismo para solicitar autorização para esses familiares residirem em Israel, "é extremamente difícil obter uma resposta e, quando há, raramente (a autorização) é concedida; e quando é concedida, costuma ter muitas restrições e limitações".
Como consequência, diz ele, muitos casais acabam morando em Israel ilegalmente; ou os cidadãos árabes israelenses "precisam se mudar para os territórios ocupados, para viver sob o regime militar com suas famílias; ou vão todos para outro lugar".
Iraqi sugere que milhares de famílias são afetadas por esta proibição.
"Esta lei é considerada há muito tempo uma das mais racistas de Israel, justamente pela maneira como visa diretamente os palestinos."
Amir Fuchs concorda com Iraqi na avaliação de que esta lei é "discriminatória".
Ele lembra que a legislação foi contestada perante a Suprema Corte, onde sua constitucionalidade foi validada por estreita maioria.
"O Estado indicou que havia razões de segurança, dizendo que se milhares de palestinos adquirissem a cidadania israelense por meio do casamento, era provável que alguns deles fossem terroristas. A Suprema Corte aceitou esse argumento, mas acho que foi um erro", explica Fuchs à BBC News Mundo.
Esta lei foi inicialmente aprovada durante a Segunda Intifada, quando grupos palestinos realizavam atentados suicidas frequentes em Israel.
Citando dados do Shin Bet, a agência de inteligência de Israel, o jornal The Scotsman publicou em 2006 que cerca de 25 entre quase 100 mil palestinos casados ??com cidadãos israelenses haviam participado de atividades consideradas terroristas nos últimos anos.
"No início dos anos 2000, a situação era terrível, tínhamos atentados a bomba praticamente a cada duas semanas. Mas se esta lei era justificada na época, agora não é mais. Deveria ser abolida", diz Fuchs.
O especialista concorda com as organizações pró-Palestina que argumentam que esta lei é uma resposta a "preocupações demográficas".
"Algumas pessoas diziam que permitir a entrada em Israel de dezenas de milhares de cônjuges procedentes dos Territórios Palestinos mudaria o equilíbrio demográfico de Israel, aumentando a proporção de palestinos no país. Acho que provavelmente essa foi a verdadeira lógica do Estado, mas eles não se atreveram a dizer isso, e perante a Suprema Corte se esconderam atrás das razões de segurança", afirma.
2. Lei do Retorno
Aprovada em 1950, a Lei do Retorno estabelece que qualquer judeu no mundo pode migrar para Israel e obter cidadania.
Para as organizações pró-Palestina, é um dos maiores exemplos de discriminação em Israel.
"Isso significa que o Estado já dizia desde o início que se você não é judeu, não é uma prioridade e não tem igualdade de direitos", diz Iraqi à BBC News Mundo.
"Essa situação contrasta com o fato de que os refugiados palestinos que nasceram na Palestina histórica antes de 1948 e seus descendentes ainda são proibidos de retornar a este Estado", acrescenta.
Fuchs, por sua vez, considera equivocadas as críticas a esta legislação, uma vez que, segundo ele, a lei não estabelece nenhuma discriminação entre aqueles que têm cidadania israelense.
"A Lei do Retorno discrimina pessoas de outras partes do mundo, mas muitos países têm leis discriminatórias sobre questões de imigração. E, neste caso, é justificado porque Israel é o Estado-nação do povo judeu. Este foi, de fato, o motivo da sua criação", observa.
3. Lei do Estado-Nação
Aprovada em 2018, a Lei do Estado-Nação declara Israel como o Estado-Nação do povo judeu, algo que já estava incluído na Declaração de Independência do país, mas que gerou muita polêmica.
"Esta lei mudou tudo e nada ao mesmo tempo porque já havia muitas leis em Israel que discriminavam os cidadãos palestinos e consagravam a supremacia dos cidadãos judeus e dos judeus ao redor do mundo em relação aos palestinos", analisa Iraqi, destacando que esta norma tem natureza constitucional, diferentemente de outras.
O analista questiona que a lei estabeleça os assentamentos judeus como um "valor nacional", cuja promoção e consolidação devem ser almejadas; que o direito à autodeterminação é exclusivo do povo judeu; e que a língua árabe foi "rebaixada" de uma língua co-oficial para uma língua especial.
"No que diz respeito à Lei do Estado-Nação, a ideia da existência de direitos coletivos, de pertencimento nacional, só compete aos judeus, enquanto os palestinos têm apenas direitos individuais, como ter direito ao desenvolvimento socioeconômico ou o direito de voto", afirma.
Amir Fuchs tem lutado contra a Lei do Estado-Nação por considerá-la um erro, embora aponte que sua sonhada Constituição, diria no primeiro parágrafo que Israel é o Estado-Nação do povo judeu pois, como ele destaca, esta é a sua razão de ser.
"Muitas constituições dizem, por exemplo, 'este é o Estado do povo croata' ou 'este é o Estado do povo húngaro", mas neste mesmo parágrafo ou no próximo estabelecem que garantem a todas as minorias igualdade absoluta perante a lei ou algo do gênero. É isso que falta nesta lei, razão pela qual a combatemos", explica.
O especialista sustenta que essa omissão não foi um equívoco, uma vez que "os promotores da lei tentaram mudar o equilíbrio estabelecido pela Suprema Corte durante anos de veredictos que estabelecem que o fato de Israel ser a terra dos judeus não significa que você pode discriminar os árabes".
Fuchs destaca que, na prática, não muda muito porque Israel dispõe de várias leis que estabelecem a igualdade de direito, mas considera grave a mensagem que se transmite com a norma.
"As constituições não são apenas uma questão de direitos e leis, também têm a ver com a educação, e a mensagem desta lei de que os árabes são cidadãos de segunda classe é muito ruim, inclusive é falsa".
O especialista indica que, embora não haja como saber se a recente violência dentro de Israel foi consequência desta lei, ele não tem dúvida de que sua aprovação não ajudou os árabes a se sentirem parte do país, tampouco tratados como iguais.
"Pelo contrário, faz com que se sintam alienados e cidadãos de segunda classe, e esse é um grande erro que espero ser corrigido um dia."
4. Lei de Terras de Israel
A ocupação, o controle e a propriedade da terra desempenharam um papel central na formação do Estado de Israel.
Amjad Iraqi afirma que 93% das terras pertencem ao Estado, algo que só acontece, segundo ele, em países como China, Coreia do Norte ou Cuba.
"Este grau de controle estatal sobre a terra existe porque se quer dar prioridade aos judeus na entrega de terras e moradias", diz ele.
A Lei de Terras de Israel, aprovada em 1960 com status constitucional, proíbe a transferência da propriedade das terras do Estado que são administradas por diferentes entidades e que, normalmente, as alugam com contratos de longo prazo.
Historicamente, uma dessas entidades tem sido o Fundo Nacional Judaico (JNF, na sigla em inglês), uma organização não governamental criada no início do século 20 com a finalidade de adquirir terras para o povo judeu.
Iraqi afirma que os estatutos do JNF estabelecem que ele só pode alugar suas propriedades para judeus.
Esta regra foi legalmente contestada, e a Procuradoria-geral de Israel determinou em 2005 que a aquisição e administração de terras pela JNF era discriminatória e, portanto, não podia mais ser realizada com a ajuda do Estado.
Iraqi argumenta que o efeito de muitas leis, políticas e instituições relacionadas à questão fundiária é que os árabes israelenses acabaram ocupando cerca de 3,5% do território, apesar de representarem 20% da população.
Ele indica que após a criação de Israel, muitas terras foram confiscadas de localidades majoritariamente palestinas, reduzindo em um terço, por exemplo, o território de sua terra natal.
Além disso, ele conta que em 2011 foi aprovada uma lei que permite o estabelecimento em pequenas comunidades de comissões de admissão que têm o poder legal de rejeitar aqueles que pretendem residir nelas.
"Isso significa que posso fazer uma solicitação e ser rejeitado porque o comitê de admissão considera que, por ser árabe, não vou me encaixar no tecido social dessa comunidade", diz Iraqi.
Para Amir Fuchs, a Lei de Comitês de Admissão é "discriminatória" e "problemática".
"Escrevemos muito sobre ela no Instituto de Democracia de Israel. Eu estava no Knesset (Parlamento) quando foi aprovada. Tentamos impedir, mas não conseguimos", relembra.
Ele destaca que o problema com as terras não são as leis, mas as práticas.
"A Suprema Corte estabeleceu em muitos veredictos que o país e as instituições que administram as terras não podem discriminar entre judeus e não judeus. Claro, há pessoas que discriminam porque são racistas, mas essa discriminação não é baseada na legislação", ressalva.
"Quando há uma discriminação que você pode provar, a Suprema Corte intervém. Houve um veredicto famoso chamado Kaddan, em que o tribunal disse que não poderia criar uma cidade e dizer 'esta cidade é para judeus'. Isso foi proibido depois dessa decisão", acrescenta.
5. Lei da Nakba
Em 2011, Israel aprovou a Lei da Nakba, que prevê a possibilidade de as autoridades retirarem o financiamento público de qualquer instituição que celebre a Independência de Israel como um dia nacional de luto.
"Na prática, isso significa que se um teatro, uma escola ou uma universidade, por exemplo, permitir que os cidadãos palestinos façam uma vigília ou protesto para falar sobre a Catástrofe (Nakba, é a palavra árabe usada pelos palestinos para se referir a esse dia) em 1948, em contraste com o Dia da Independência de Israel, o governo pode ameaçar essas instituições com a retirada de seus fundos", explica Amjad Iraqi.
"Basicamente, é uma tentativa das instituições de Israel de silenciar e impedir qualquer tentativa de exaltar a Nakba", acrescenta.
Iraqi observa que quando a direita chegou ao poder em 2009, com a vitória de Benjamin Netanyahu nas urnas, "eles estavam apavorados pelo fato de que os palestinos insistiam em exigir igualdade e reafirmar sua identidade".
"Acabamos tendo leis discriminatórias para suprimir isso", conclui.
A lei, afirma o especialista, serviu para intimidar muitas instituições, mas os palestinos em Israel encontraram novas maneiras de lembrar a Nakba.
"Este é um daqueles casos em que o Estado assume um papel ativo na tentativa de apagar qualquer tipo de história ou memória palestina", diz ele.
Amir Fuchs esclarece que não se trata de uma lei criminal, mas civil. Não proíbe a exaltação da Nakba, ele explica, mas permite a retirada do financiamento público das instituições que o fazem.
"O problema é que eles podem retirar três vezes o valor do que você gastou naquele evento específico e até metade de todo o seu orçamento. Então, obviamente, nos opusemos a ela porque isso vai contra a liberdade de expressão."
Fuchs afirma que árabes e israelenses têm versões diferentes do que aconteceu em 1948.
"Houve uma guerra, e eles perderam. Não importa se uma narrativa ou a outra está correta. Isso é um fato, houve avós que morreram e familiares que se tornaram refugiados. E não importa como ou por que isso ocorreu. É por isso que apoio totalmente o direito deles de relembrar", diz.
Segundo ele, muitos israelenses se opõem à exaltação da Nakba porque acreditam que, ao equiparar a fundação de Israel a uma "catástrofe", estão deslegitimando a criação do Estado.
"É por isso que dizem, tudo bem, você pode relembrar, mas não com dinheiro do Estado."
De qualquer forma, ele ressalta que até agora a Lei da Nakba nunca foi aplicada e que o governo não retirou recursos de nenhuma instituição.
"Acho que tem um caso em que quase foi aplicada, mas não há uma decisão final. Era um processo para tirar os fundos de um teatro que apresentava espetáculos com temas de terrorismo ou algo do gênero", explica.
Ele acrescenta que, quando a legislação foi contestada, a Suprema Corte disse que era cedo demais para decidir porque a lei não havia sido aplicada.
"De qualquer forma, se for aplicada, por exemplo, quando uma escola fizer uma cerimônia sobre a Nakba, e o Ministério da Educação retirar o financiamento, ela irá para a Suprema Corte, onde acho que será revogada", conclui.
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