Fim de sigilo revela troca de acusações entre PGR e PF em investigação de atos antidemocráticos
O ministro do STF Alexandre de Moraes ainda vai decidir se inquérito será ou não arquivado.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) e a Polícia Federal (PF) entraram em rota de colisão sobre a continuidade ou não da investigação sobre possível envolvimento de autoridades na convocação de atos antidemocráticos nos primeiros meses de 2020.
Naquele período, apoiadores do presidente Jair Bolsonaro realizaram manifestações que reivindicavam o uso das Forças Armadas para fechar o Congresso Nacional e o Supremo.
Ao longo do ano passado, o inquérito investigou ativistas bolsonaristas, servidores públicos e legisladores, incluindo Eduardo Bolsonaro (deputado federal do PSL/RJ) e Carlos Bolsonaro (vereador do Republicanos/RJ), filhos do presidente.
Em meio ao embate sobre a continuidade ou não da apuração, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, relator do caso, determinou o fim do sigilo do inquérito nesta segunda-feira (07/06). Cabe a ele decidir se a investigação será ou não arquivada.
O fim do sigilo do inquérito revela trocas de acusações entre as duas instituições atuantes no inquérito.
De um lado, a PF diz em seu relatório final, de janeiro deste ano, que não conseguiu aprofundar alguns aspectos da investigação porque diligências solicitadas em junho de 2020 não foram autorizadas após discordância da PGR.
De outro, a PGR acusa a Polícia Federal de não ter conduzido uma investigação eficiente ao longo de meses de apuração e diz que a PF deixou de realizar uma série de análises dos materiais apreendidos nas ações de busca e apreensão.
Para o vice-procurador-geral Humberto Jacques, que assina o pedido de arquivamento apresentado em 4 de junho, a falta de resultados obtidos pela PF justificam o encerramento do inquérito contra autoridades com foro no STF.
Ele, porém, concordou com o pedido de abertura de outros seis inquéritos pela PF para apurações mais específicas de possíveis crimes cometidos por pessoas que não têm prerrogativa de função. Nesse caso, o vice-PGR recomendou que as investigações sejam remetidas à primeira instância.
O que a PF apurou e o que mais quer investigar?
O inquérito dos atos antidemocráticos foi aberto em abril de 2020, e em janeiro deste ano a PF apresentou seu último relatório à PGR com as conclusões das investigações e pedidos de novas apurações.
No período de investigação, seguindo determinação de Alexandre de Moraes, foram colhidos 56 depoimentos de acusados e testemunhas, assim como foram cumpridos mandados de busca e apreensão e de quebra de sigilo bancário e fiscal contra ativistas e parlamentares bolsonaristas. Foram também requisitadas informações a empresas de redes sociais.
No relatório final, a Polícia Federal diz "a investigação permitiu identificar a existência de um grupo de pessoas que se influenciam mutuamente, tanto pessoalmente (em manifestações públicas, por exemplo), como por meio de redes sociais digitais (...), com o objetivo de auferir apoio político-partidárias por meio da difusão de ideologia dita conservadora, polarizada à direita do espectro político."
Como indício da existência de pessoas dentro dessa articulação que estariam atuando contra as instituições democráticas, o relatório cita um manuscrito encontrado na residência do blogueiro Allan dos Santos, um dos investigados, que coloca como "fim último" das manifestações de rua "derrubar os governadores/prefeitos".
O relatório detalha ainda uma análise da PF sobre contas banidas no ano passado pelo Facebook por comportamento inautêntico (contas que atuam em conjunto para enganar as pessoas sobre quem são e fazem, por exemplo ao se passar falsamente por páginas jornalísticas). A PF diz que identificou que esses perfis foram acessados de dentro do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro.
A PF, porém, diz que necessita de mais prazo para investigar se a Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom) direcionou recursos a "canais incumbidos da produção e da difusão de propaganda, em meios de comunicação (Twitter, YouTube,Facebook), de processos ilegais para alteração da para alteração da ordem política ou social, bem como para incitar parcelo da população à subversão da ordem política ou social e à animosidade das Forças Armadas contra o Supremo Tribunal/ Federal e o Congresso Nacional".
Além disso, a PF argumenta que outra possível forma de uso de recursos públicos na organização de atos antidemocráticos é o fato de alguns dos envolvidos nas manifestações terem obtido cargos no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, pasta comandada por Damares Alves.
Por isso, a Polícia Federal defende a necessidade de aprofundar também essa investigação, citando como exemplo a ativista Sara Giromini, que foi coordenadora do ministério e é uma das principais lideranças de manifestações pelo fechamento do STF. Conhecida como Sara Winter, ela chegou no ano passado a ser presa por dez dias por determinação do ministro Alexandre de Moraes.
O relatório cita ainda outras pessoas investigadas por envolvimento nos atos antidemocráticos que atuaram no ministério de Damares, como Sandra Eustáquio, ex-secretária da pasta e mulher de Oswaldo Eustáquio (jornalista que também chegou a ser preso dentro do inquérito).
A PF alega que não conseguiu aprofundar a investigação desses dois pontos, a atuação da Secom e de servidores da pasta de Damares, porque não foram autorizadas diligências solicitadas em junho de 2020.
Segundo o relatório final da PF, o objetivo era "permitir a obtenção direta dos dados sob domínio de órgão público e entidades privadas, sem que houvesse risco de manipulação/preparação das informações".
Ainda segundo o órgão, "não foi possível obter informações aptas a verificar se a SECOM adotou medidas que impedissem o direcionamento de recursos federais aos canais, ou se não teria impedido a utilização de backlists (hiperlinks que redirecionam o usuário paro outro site) em sítios governamentais, aumentando a autoridade de domínio e permitindo a promoção de alguns dos canais".
"Não houve aprofundamento no entendimento de quais seriam os mecanismos de filtragem eventualmente disponíveis e/ou empregados pela SECOM, bem como quem seriam os servidores do governo federal diretamente responsáveis pelas ações/omissões que, de alguma forma, beneficiariam os canais indicados", diz também o documento.
Os argumentos da PGR
A PGR, por sua vez, faz duras críticas ao trabalho da PF em sua manifestação pelo arquivamento do inquérito, apresentada cinco meses após o relatório final.
O vice-procurador-geral Humberto Jacques, inclusive, diz que a demora em apresentar a manifestação decorreu das falhas no relatório.
"Acreditava-se que seis meses serviriam para uma extensa e percuciente exploração do conjunto arrecadado", disse, em referência ao material levantado na investigação.
"O que se viu, no entanto, foi o envio de um emaranhado de atos dispersos e repetidos em dezenas de apensos e anexos, sem um mínimo de sistematização, prejudicando, assim, a atuação célere deste órgão do Ministério Público Federal, que se viu forçado a dedicar pessoal e significativa parte do tempo que deveriam ser utilizados na apreciação de outros inquéritos ao saneamento deste", criticou.
Humberto Jacques diz que parte do material apreendido não foi analisada pela PF, mesmo tendo sido classificado como de alta relevância, como "os bens apreendidos com Emerson Rui Barros dos Santos, Érica Viana de Souza e Arthur Castro, do grupo "Os 300 do Brasil", Alberto Junio da Silva, do canal "Giro de Notícias", Adilson Nelson Dini, do canal "Ravox Brasil", Emerson Teixeira de Andrade e Anderson Azevedo Rossi, do canal "Foco do Brasil".
O vice-PGR também que não é possível saber se foram analisados "os bens recolhidos nos endereços de Otavio Oscar Fakhoury, Allan Lopes dos Santos e Sara Fernanda Giromini (...) dado que os informes de exploração dos objetos correspondentes a cada um destes três alvos não contêm discrímens (não foram discriminados) com essa observação".
Em outra crítica à PF, a manifestação da PGR diz que "não foi encontrado nos diversos volumes que passaram a compor o inquérito, o auto de apreensão dos dois discos rígidos e dos dois aparelhos de telefonia celular encontrados com Fernando Lisboa da Conceição. Idêntico problema foi verificado em relação aos discos rígidos e aparelhos de telefonia celular de Otavio Oscar Fakhoury".
Para Humberto Jacques, "essas falhas dificultam a compreensão das próprias informações, diminuem a percepção de sua relevância, impedem que elas sejam relacionadas entre si e, consequentemente, obstam a visão integral do fenômeno".
Em outro trecho, o vice-PGR diz ainda que a PF deixou de apurar informações financeiras dos acusados, "na medida em que os dados encaminhados pelo Banco Central do Brasil, devidamente compartilhados pelo Ministério Público Federal com a Polícia Federal, não foram examinados pelo órgão".
Após essas críticas, a manifestação pelo arquivamento sustenta que a investigação criminal não pode se alongar "sobretudo quando lança suspeição difusa sobre a política sem demonstração cabal de elementos por investigadores profissionais".
"Não parece crível que, após o decurso de mais de um ano dos fatos investigados, a Polícia Federal será capaz de esgotar, em um prazo que possa ser considerado 'razoável', as muitas diligências que deveriam ter sido realizadas pelo órgão no tempo próprio", argumenta ainda o vice-PGR.
Por outro lado, a manifestação apoia a abertura de seis inquéritos na primeira instância judicial para investigar pessoas sem foro privilegiado. Entre os focos dessas propostas de investigação estão possíveis ilegalidades no financiamento do site Terça Livre, do blogueiro Allan do Santos, devido a doações volumosas feitas por alguns servidores públicos. Outro foco são supostas tentativas de obstruir os trabalhos da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito das Fake News.
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