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'Rio voador', o fenômeno climático que ajuda a explicar tragédias no Brasil

Tempestade atingiu Petrópolis (RJ), causando destruição e mortes - REUTERS
Tempestade atingiu Petrópolis (RJ), causando destruição e mortes Imagem: REUTERS

Rafael Barifouse

BBC News Brasil, em São Paulo

16/02/2022 14h44Atualizada em 17/02/2022 08h59

As tempestades que vêm causando tragédias como a de Petrópolis, na região serrana do Rio, a mais recente de uma sequência desde o final do ano passado, têm em comum um mesmo fenômeno.

Assim como a água corre em terra, também há fluxos massivos de água nos céus.

Na América do Sul, um desses enormes corredores de umidade atmosférica vai da região amazônica até o centro-sul do país.

Esse "rio voador" carrega parte da água que evapora no norte para outras partes do território nacional.

"É uma região muito úmida e tropical, onde tem um aquecimento constante. A Floresta Amazônica por si só já despeja uma quantidade enorme de água na atmosfera pela evaporação", explica Estael Sias, da Metsul Meteorologia.

"O relevo da América do Sul, a cordilheira dos Andes, não deixa essa umidade escapar do continente, obrigando esse rio voador a descer."

Se esse corredor de umidade se encontra com uma frente fria vinda do sul, as nuvens carregadas tendem a ficar concentradas por alguns dias em uma determinada região.

Gráfico sobre 'rio voador'

Um fenômeno potencializa o outro, formando um terceiro - a chamada zona de convergência do Atlântico Sul, que é recorrente durante o verão nesta região do planeta e provoca fortes chuvas.

Foi o que aconteceu primeiro no sul da Bahia, no final do ano passado e, depois, em Minas Gerais, no início do mês.

Depois, foi a vez das chuvas torrenciais atingirem São Paulo e, agora, Petrópolis, provocando mais inundações, deslizamentos e mortes.

Sias explica que o rio voador da América do Sul corre a uma altitude entre 5 a 10 km do solo e fica ativo durante o ano todo.

Seu curso e alcance são influenciados pela dinâmica dos ventos na região e pela passagem de outros fenômenos pelo continente.

"No inverno, um sistema de alta pressão atmosférica não deixa a maioria das frentes frias subirem até o Sudeste ou o Centro-Oeste, por isso é um período muito seco nessa parte do país, e o rio atmosférico consegue ir até mais ao sul", afirma a especialista.

"No verão, esse bloqueio vai para o oceano, se afastando do continente, e as frentes frias conseguem subir. Quando sobe uma frente fria, ela se conecta à umidade amazônica, e elas vão andando juntas até parar em cima do Sudeste ou do Nordeste do Brasil e se transformar em chuvas e temporais."

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Encontro de 'rio voador' com frente fria cria zona de convergência na região do Atlântico Sul
Imagem: Climatempo

Sias afirma que, na semana passada, o rio voador estava mais disperso, mas que, nesta semana, uma massa de ar frio e seco chegou ao sul do país e criou uma barreira que não deixou o corredor de umidade avançar.

As nuvens ficaram então paradas sobre a região metropolitana de São Paulo e foram potencializadas pela frente fria, provocando fortes chuvas.

O resultado foi que choveu em poucos dias a média histórica para o mês inteiro, e isso foi fatal em uma região que já vinha sofrendo com tempestades.

Fenômeno é característico do verão

No entanto, apesar de muita gente pensar que chuvas assim são excepcionais, Francisco de Assis, do Instituto Nacional de Meteorologia, explica que as zonas de convergência são algo característico da América do Sul no verão.

"Dependendo do ano, ocorrem mais para o sul ou mais para o norte", afirma Assis.

Nesta época do ano, o corredor de umidade que vem da Amazônia ganha força. "Há uma alta liberação de calor e umidade da Amazônia devido às temperaturas elevadas,", afirma Assis.

Também há uma maior evaporação de água dos oceanos Pacífico e Atlântico, intensificando esses fenômenos meteorológicos, explica o especialista.

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Em poucos dias, choveu a média de janeiro inteiro na região metropolitana de SP
Imagem: REUTERS

Josélia Pegorim, meteorologista da Climatempo, reforça que as zonas de convergência acontecem todos os anos, com maior ou menor intensidade.

"Se pegarmos outros eventos de desastres naturais e de chuvas catastróficas, no Sudeste em particular, quase todos, ou a maior parte, estiveram associados à formação de zonas de convergência", diz Pegorim.

A especialista avalia que as tragédias ocorrem não pela intensidade das chuvas ou porque elas sejam imprevisíveis - na verdade, foi o contrário, dizem os meteorologistas ouvidos pela reportagem, e alertas foram emitidos com antecedência.

O problema é a falta de preparo e de reação das autoridades aos avisos.

"A culpa é da chuva até certo ponto. Não se pode dizer que é por causa das mudanças climáticas ou que nunca choveu assim, porque já teve chuvas até piores. Não teve surpresa", diz Pegorim.

Ao mesmo tempo, afirma a meteorologista, a canalização do ar úmido da região Norte em direção ao Centro-Oeste e ao Sudeste e a formação das zonas de convergência no encontro com frentes frias, formando tempestades, tem uma função importante.

"Esse sistema é fundamental para que consigamos recompor as reservas de água para os reservatórios de geração de energia e de abastecimento da população."