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O autoproclamado reino que não reconhece a Alemanha

Jenny Hill - Correspondente da BBC em Berlim (Alemanha)

10/12/2022 19h52

Dinheiro, carteiras de identidade, bandeiras e até seu próprio rei: conheça os alemães que se recusam a reconhecer o estado.

Nas profundezas do interior no leste da Alemanha, há uma fronteira invisível.

As torres de um imponente castelo emergem das copas das árvores. Uma placa na porta da frente informa solenemente ao visitante que ele entrou — na verdade — um novo país.

O "Königreich Deutschland" (Reino da Alemanha) é um estado independente autoproclamado — completo com seu próprio rei autonomeado.

Peter o Primeiro, como prefere ser conhecido, nos recebe em um salão bastante sombrio com painéis de madeira.

Faz cerca de uma década desde sua coroação — houve uma cerimônia, completa com orbe e cetro — e a fundação de seu chamado reino, que tem seu próprio dinheiro, imprime suas próprias carteiras de identidade e tem sua própria bandeira.

Ele é o que é conhecido na Alemanha como "Reichsbürger" (Cidadão do Reich), uma das cerca de 21 mil pessoas que são definidas pelas agências de inteligência do país como teóricos da conspiração que não reconhecem a legitimidade do estado alemão do pós-guerra.

Eles ganharam destaque nesta semana, com a prisão de 25 pessoas em operações contra o Reichsbürger, suspeitos de conspirar para invadir o prédio do parlamento alemão, o Reichstag, no que seria uma derrubada violenta do governo.

Mas o rei Peter diz que não tem tais intenções violentas.

Apesar disso, afirma que o estado alemão é "destrutivo e doente".

"Não tenho interesse em fazer parte desse sistema fascista e satânico", diz.

Nós nos acomodamos em outra sala para conversar, em poltronas macias sob um lustre brilhante.

Rei Peter o Primeiro se diz "Rei da Alemanha" - Reprodução - Reprodução
Rei Peter o Primeiro se diz "Rei da Alemanha"
Imagem: Reprodução

Mas este não é um salão; estamos cercados por luzes e câmeras. Este é o próprio estúdio de TV do rei Peter — ele espera inaugurar um canal de TV em breve — e eu soube que um de seus súditos gravará cada momento de nossa interação.

Ele diz que não tinha escolha a não ser fundar seu reino, tendo tentado, sem sucesso, concorrer a prefeito e membro do parlamento alemão.

"Pessoas corruptas, criminosas ou dispostas a serem usadas prosperam no sistema alemão e aquelas com um coração honesto, que querem mudar o mundo para melhor, no interesse do bem comum, não têm chance."

Seu nome verdadeiro é Peter Fitzek, e suas atividades o colocaram em conflito frequente com a lei alemã.

A Alemanha não reconhece o reino ou seus documentos: Fitzek tem várias condenações por dirigir sem habilitação e administrar seu próprio programa de seguro saúde. Também foi preso por vários anos por desviar o dinheiro de seus cidadãos, mas a condenação foi posteriormente anulada.

O serviço de inteligência regional, que tem monitorado ele e seu reino por quase dois anos, nos disse que os veem como uma ameaça. São comparados a um culto que expõe as pessoas a teorias da conspiração e ideologia extremista.

Tais teorias e ideologias proliferaram na Alemanha nos últimos anos, alimentadas pela pandemia. E a covid-19 parece ter aumentado o apoio e a adesão ao reino.

Fitzek nos diz que tem cerca de 5 mil cidadãos. E está expandindo o reino, comprando terras na Alemanha para estabelecer várias comunidades nas quais essas pessoas possam viver.

Visitamos um desses postos avançados a cerca de 240 quilômetros do castelo do rei.

Árvores antigas cercam o local de outro antigo castelo na vila de Bärwalde, a uma hora e meia de carro ao sul de Berlim. Cerca de 30 pessoas moram no local, no prédio principal ou em trailers que se espalham pelo gramado ao longo da entrada principal.

Apesar da beleza desbotada do castelo, trata-se um lugar sombrio. Eles ainda estão reformando os prédios e limpando o terreno. Os troncos das árvores ainda crescem através do esqueleto de uma velha estufa.

Mas as pessoas aqui têm orgulho de sua casa, que também consideram território do reino.

Os cidadãos não pagam impostos e não mandam seus filhos para a escola, o que é ilegal na Alemanha. Obedecem a sua própria estrutura legal — presidida, segundo me disseram, pelo rei Peter — e, em última análise, pretendem criar seu próprio sistema de saúde.

"O reino pode fornecer tudo o que você precisa na vida cotidiana. Alimentação e nutrição, segurança social, todos esses sistemas estão lá", diz Benjamin, que recentemente se mudou para cá com sua jovem família e é responsável pelas relações públicas do "reino".

Apesar de todos os seus planos para construir uma comunidade verde sustentável, usando tecnologias modernas, os cidadãos parecem ter pouca fé na medicina moderna.

Ninguém aqui está vacinado contra a covid-19, Benjamin me diz. É um posicionamento comum para o Reichsbürger, muitos dos quais aderiram a protestos contra as medidas de controle da pandemia.

"As pessoas que pensam por si mesmas hoje serão frequentemente condenadas como teóricas da conspiração", diz Benjamin. "Mas é fato que muitas vezes essas são as pessoas que ficam acordadas à noite pensando em problemas, não apenas os seus, mas os da sociedade e da política."

Quando saímos da comuna e voltamos para o vilarejo, um vizinho estava parado no gramado da frente.

Quando perguntei o que ele achava de seus vizinhos, ele franziu a testa. Eles deveriam pagar impostos, diz ele. Afinal, eles ainda acessavam os recursos da Alemanha. Mas o que mais o preocupava, acrescenta, eram seus próprios filhos. "Que tipo de influência esse pessoal terá sobre eles?"

Por muitos anos, o Reichsbürger foi uma piada nacional. A Alemanha está agora aprendendo a levá-los a sério.

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63931139