A 'epidemia' de fraudes que leva ao cancelamento de concursos públicos na Índia
Trapacear em provas de concurso é comum no país, onde os candidatos fazem de tudo para conseguir um emprego público.
Em uma manhã gelada de dezembro na Índia, a polícia do Estado do Rajastão, no oeste do país, começou a seguir um ônibus que se dirigia à cidade de Udaipur.
Na noite anterior, eles haviam recebido um aviso de que as folhas de prova de um concurso para contratar professores nas escolas do governo estadual iriam vazar pela manhã, poucas horas antes que milhões de candidatos fizessem o exame.
O concurso era aguardado ansiosamente e foram preparados cerca de 1.200 locais de prova, no dia 24 de dezembro.
Na Índia, os empregos públicos são muito cobiçados e os casos de candidatos que recorrem a meios desonestos não são incomuns.
Para tentar garantir a sua vaga, muitos candidatos trapaceiam nos exames - seja comprando folhas de provas ou pagando a alguém para fazer o teste no seu nome.
O ônibus em Udaipur estava a caminho de um local de provas e a polícia suspeitou que os responsáveis pelo vazamento estivessem a bordo.
Eles primeiro esperaram à distância enquanto o ônibus circundava uma construção por alguns minutos. Depois, eles o abordaram.
"Dentro do ônibus, encontramos quatro professores de escolas do governo respondendo folhas de prova para pelo menos 20 candidatos", afirmou o policial, que preferiu permanecer anônimo.
Os candidatos supostamente pagaram - a polícia não especificou qual valor - aos professores que aplicariam as provas para que resolvessem as questões para eles.
E cerca de 20 candidatos falsos, pagos por inscritos para fazer a prova no lugar deles, também foram presos no ônibus. A polícia alegou que eles estavam portando documentos de identidade falsos.
Ao todo, 48 pessoas relacionadas ao golpe foram presas naquela manhã, o que fez com que as autoridades cancelassem o concurso.
Dois dos principais acusados ainda estão soltos. As autoridades anunciaram uma recompensa de US$ 1,5 mil (cerca de R$ 7,8 mil) por cada um deles, disse à BBC o chefe de polícia de Udaipur, Vikas Sharma.
Este caso é o mais recente de uma série de golpes que envolveram o vazamento ou resolução de provas de concursos governamentais importantes em troca de dinheiro.
Desde 2018, pelo menos 12 concursos foram cancelados no Rajastão devido ao vazamento das provas - ocorrido poucos dias, às vezes horas, antes do exame.
Os candidatos contam que estão frustrados com os atrasos e começando a perder a fé no processo de seleção.
"Acho que não virei de novo para a prova", afirma Santosh Kumawat. Ela tem 30 anos de idade, é mãe e viajou duas vezes do Estado vizinho de Maharashtra para comparecer ao exame no Rajastão.
"Na primeira vez, eles cancelaram o exame. Na segunda, nossas folhas de respostas foram retiradas abruptamente no meio da prova, porque as questões haviam vazado", ela conta.
Fraudes ocorrem em vários Estados
Este problema não é exclusivo do Rajastão. Vazamentos de provas são notoriamente comuns em toda a Índia, onde milhões de pessoas estão desempregadas, em busca de empregos estáveis.
O cientista político Pankaj Kumar foi chefe da Comissão de Serviços Públicos do Estado de Uttar Pradesh, no norte da Índia.
A comissão é responsável pela contratação de servidores públicos e ele afirma que "a ânsia pelos cargos no governo é que deixa as pessoas desesperadas".
Os empregos públicos na Índia geralmente são para a vida toda. Kumar conta que milhões de pessoas, muitas vezes, esperam anos para conseguir e "tentar 'comprar uma vaga' acaba se tornando a tática de alguns candidatos".
Em Gujarat, Estado natal do primeiro-ministro Narendra Modi, pelo menos nove tentativas de contratar professores e funcionários de nível júnior foram canceladas desde 2014, devido a vazamentos de provas.
E, no Estado de Bengala Ocidental, no leste do país, as autoridades precisaram formar uma investigação no ano passado, depois que as provas para a contratação de professores foram amplamente compartilhadas nas redes sociais, horas antes do exame.
A história não é diferente no Estado central de Madhya Pradesh, que enfrentou um golpe em massa em 2009, quando candidatos contrataram estudantes de Estados vizinhos para fazer suas provas em um concurso médico.
As provas também vazaram e foram vendidas para candidatos a preços astronômicos, até que as autoridades reagiram, prendendo milhares de pessoas.
Os Estados de Bihar e Uttar Pradesh são igualmente conhecidos pelas mesmas razões.
Bihar fica no leste da Índia. Lá, os candidatos às vezes são proibidos de usar sapatos e meias nos locais de provas para impedir que eles colem.
No passado, as autoridades impuseram multas, prisões e até detiveram pais por supostamente ajudarem seus filhos a colar.
Já em Uttar Pradesh, as provas são frequentemente realizadas sob a vigilância de câmeras de segurança.
A polícia afirma que os vazamentos normalmente acontecem quando as provas são transportadas para os locais de aplicação.
Em outros casos, como em Udaipur, os candidatos viajam grandes distâncias para falsificar suas identidades. Com isso, apanhá-los é quase impossível para as autoridades.
Faltam empregos
Não existem atualmente leis claras para lidar com o problema, pois a maioria dos casos é registrada como transgressões passíveis de fiança, como fraudes.
Alguns Estados, como Uttarakhand, no norte do país, já aprovaram leis para punir os transgressores com prisão perpétua, mas os críticos afirmam que esta medida quase não melhorou a situação.
O policial Ashok Rathore, que investiga os vazamentos de provas no Rajastão, afirma que as autoridades precisam criar novas formas de supervisão para lidar com o problema.
"Nós pedimos ao governo que envolva a polícia e a administração local, mesmo antes do início dos exames, para que as provas fiquem fora do alcance dos fraudadores - como ocorre com as urnas de votação, que são mantidas seguras até que os votos sejam contados", afirma ele.
Mas especialistas afirmam que a questão também chama a atenção para a crise do desemprego na Índia, onde milhões de pessoas não conseguem encontrar trabalho.
A taxa de desemprego do país atingiu cerca de 8% em dezembro de 2022, segundo o grupo de pesquisa e debates Centro de Monitoramento da Economia Indiana (CMIE, na sigla em inglês). Em 2021, era de menos de 7%.
Quase 20 milhões de pessoas na Índia são empregadas pelo governo federal e estadual. E as autoridades estimam que pelo menos um milhão de outros postos estejam vagos no momento.
"Mesmo 30 anos depois da liberalização, a Índia não tem empregos suficientes para sua população, que se aproxima de 1,4 bilhão de pessoas", segundo o escritor e comentarista político Gurcharan Das.
Ele acrescenta que os empregos públicos são mais lucrativos em um país onde três quartos da sua força de trabalho são autônomos, com pouca ou nenhuma cobertura da previdência social.
"Ao contrário do setor público, os empregos privados não trazem garantia vitalícia de previdência e aposentadoria", afirma Das.
O futuro dos aspirantes aos cargos parece desanimador com os vazamentos de provas e o constante cancelamento dos concursos. Eles temem que, em breve, passarão do limite de idade para candidatar-se a esses cargos.
"Passei anos assistindo a aulas de treinamento para me qualificar para um emprego público, mas a maioria dos meus exames foi cancelada", afirma Devender Sharma.
Ele tem 30 anos de idade, mora na cidade de Bikaner, no Rajastão, e vem se candidatando a cargos públicos de nível primário no Estado há uma década.
"Meus pais me culpam pelo fracasso, mas é o sistema que falhou conosco", afirma ele.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.