"Venezuela é como paciente com câncer", diz doente sobre crise na saúde do país
Em entrevista à DW, venezuelana que sofre de câncer fala sobre a crise no setor de saúde do país. Crianças morreram por falta de medicamentos, e nem 10% dos doentes têm acesso à quimioterapia, relata.
Um ano depois de uma reportagem sobre o setor de saúde na Venezuela, a DW quis saber como a situação no país se desenvolveu desde então. Em entrevista à DW, Mildred Varela, que sofre de câncer, afirmou que as coisas estão muito pior que um ano atrás.
"Sim, é uma vergonha. Duas crianças morreram por falta de medicamento. Muitas pessoas sofrem as consequências desta crise e a impotência que temos diante dela", relatou Varela. "A situação chegou a tal ponto que há brigas de murro por um único pão. Em alguns bairros, briga-se até pelo direito de remexer o livro à espera de se encontrar comida. É muito triste ver que chegamos a esse ponto", acrescentou.
Segundo a ativista que cozinha para crianças num hospital da capital venezuelana, seu país "está como se tivesse um câncer". "É como se agora estivéssemos passando por sessões mais fortes de quimioterapia."
DW - Um ano atrás, falamos com você em Caracas. O que mudou na situação do país desde então?
Mildred Varela - É como não fosse mais meu país. Parece que todos mergulharam numa depressão coletiva. Os protestos acontecem todos dos dias e a repressão é terrível. Não se respeitam idosos, nem mulheres, nem crianças. É uma espécie de guerra civil não declarada. Enquanto num lado da cidade a Guarda e a Polícia Nacional reprimem os manifestantes, em Miraflores, onde se encontram o Parlamento e o palácio de governo, as ruas são fechadas e se instalam grupos musicais com figurantes que dançam como se nada estivesse acontecendo.
DW - A escassez de medicamentos continua sendo crítica?
Mildred Varela - Está pior. Há um ano, por volta de metade dos pacientes acometidos de câncer em Caracas ainda conseguia se submeter a uma quimioterapia. Agora, nem 10% dos doentes conseguem. A quantidade de pessoas – e o mais triste, de crianças – que morreram por não fazer esse tratamento é muito alta. Isso é o resultado da escassez aguda de medicamentos que vivemos na Venezuela.
DW - Pode dar um exemplo?
Mildred Varela - Não se consegue nem um exame de sangue. Eu tive que esperar 15 meses por um exame ósseo que tinha de fazer devido ao câncer. Também os remédios comuns continuam em falta, ainda mais que antes. As pessoas sofrem de ansiedade e pânico, porque não têm como obter os seus medicamentos. É um sentimento de impotência muito grande. Muitas vezes não se encontram nem os antibióticos comuns. E já é normal tomar medicamentos cujo prazo de validade expirou. Mesmo os médicos preferem muitas vezes dar remédios vencidos a deixar o paciente sem nenhum tipo de drogas.
DW - Há um ano falamos com seu esposo. Ele sai para protestar?
Mildred Varela - Julio trabalha numa empresa pública. No dia 1° de maio – Dia do Trabalho – ele foi obrigado com o resto dos trabalhadores a marchar a favor do governo. E não só na empresa onde trabalha: todos os funcionários públicos foram coagidos a participar de manifestações pró-governo. Além disso, eles são controlados. Por exemplo, fazem fotos durante as marchas para verificar a presença deles. Julio esteve na manifestação das 9h às 16h, chegou em casa exausto e furioso.
DW - E se os funcionários públicos se recusarem a participar das marchas?
Mildred Varela - Aqueles que não participam das manifestações pró-governo são fichados e mandados embora. Durante o trabalho, os chefes fazem insinuações, dizendo que hoje é mais necessário que nunca, que é uma obrigação apoiar "o processo". Isso acontece com todos os funcionários públicos que, com medo de perder o trabalho, acabam participando das marchas.
DW - Algumas das pessoas que vimos um ano atrás, quando foi feita a reportagem sobre a saúde na Venezuela morreram...
Mildred Varela - Sim, é uma vergonha. Duas crianças morreram por falta de medicamento. Muitas pessoas sofrem as consequências desta crise e a impotência que temos diante dela.
DW - Desde o início da falta de medicamentos, você coleta doações para ajudar especialmente pacientes do hospital infantil. Qual a sua tarefa agora?
Mildred Varela - Agora não se trata somente de medicamentos. Não se pode fazer quimioterapia sem ao menos uma refeição sólida por semana, especialmente quando os pacientes são crianças. Devido à crise em que nos encontramos, eles não recebem uma boa alimentação no hospital. Por isso, todas as terças-feiras, a minha associação [Aconvida] e eu cozinhamos com os ingredientes doados e levamos ao hospital sopas, gelatina e tudo que pudermos.
A terça-feira é o dia em que os pequenininhos com câncer fazem quimioterapia. Devido ao meu estado de saúde, eu não posso sair sempre às ruas para protestar. Portanto, esta é a minha contribuição: coletar medicamentos doados ou presenteados e reparti-los, assim como cozinhar para as crianças do hospital.
DW - Você mencionou a crise alimentar. Qual é a situação agora?
Mildred Varela - Está pior que há um ano. Agora os chamados coletivos [semelhantes a paramilitares] tomaram conta de algumas padarias. Eles decidem sobre a quantidade de pães a ser produzida e a quem eles serão vendidos. Em alguns casos, eles desapropriaram por completo algumas panificadoras, de forma que o Conselho Comunal distribui o pão a seu critério.
A situação chegou a tal ponto que há brigas de murro por um único pão. Em alguns bairros, briga-se até pelo direito de vasculhar o lixo à espera de se encontrar comida. É muito triste ver que chegamos a esse ponto.
DW - Há um ano, você esperava que houvesse uma mudança. O que você acha hoje?
Mildred Varela - Eu tenho uma metáfora muito clara a esse respeito. Para mim, a Venezuela está como se tivesse um câncer. É como se agora estivéssemos passando por sessões mais fortes de quimioterapia, onde há uma fase que é mais dura e que dói muito mais. Muitos padecem nesse caminho. Mas quando esse período chega ao fim, sabe-se que virá algo melhor – nesse caso para todos os venezuelanos.
As pessoas perderam os seus medos. O mundo conhece a situação em que vivemos: um colapso da economia e da democracia. Mas continuo otimista. Acho que, depois de tudo que vivemos, a situação vai melhorar.
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