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Protestos elevam pressão sobre governo da Nicarágua

Evan Romero-Castillo (as)

24/04/2018 14h25

Manifestantes não cedem mesmo após recuo do presidente na reforma da previdência. Pela primeira vez em 11 anos de governo, Ortega e Murillo, sua esposa e vice-presidente, se veem confrontados com pedidos de renúncia.O presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, viu-se obrigado a anunciar, neste domingo (22/04), a revogação da sua controversa reforma da previdência social, a qual motivara amplos protestos desde 18 de abril, nos quais morreram 27 pessoas e mais de cem ficaram feridas.

Ao que tudo indica, porém, o recuo do presidente não diminuiu o ímpeto dos manifestantes. Nesta segunda-feira, milhares de pessoas saíram às ruas em Manágua e outras cidades para pedir, pacificamente, a renúncia de Ortega e de sua esposa e vice-presidente, Rosario Murillo, que foram acusados de repressão e violação dos direitos humanos em seus 11 anos à frente do país.

A inesperada brutalidade com que as forças de segurança investiram contra os nicaraguenses levou também à ruptura de diálogo entre o mandatário e o empresariado. A aliança do antigo guerrilheiro com os grupos econômicos mais poderosos do país, antes seus adversários, é um dos fatores que garantiram sua prolongada permanência no poder.

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Analistas afirmam que os protestos são um ponto de inflexão na história recente da Nicarágua e, muito mais do que a fracassada reforma da previdência, eles refletem também outros problemas graves do país, como a escassez de petróleo venezuelano, que era uma garantia de funcionamento para o país da América Central.

"Faz tempo que a economia nicaraguense deixou de ser a dos números reais. A cooperação venezuelana vinha sendo a caixa de trocados para sustentar todas as ações populistas, todo o financiamento social que maquilava o governo de Ortega como um 'governo para os pobres'", afirmou a enteada do mandatário, Zoilamérica Narváez, que vive exilada na Costa Rica.

Companheira Rosario

A Frente Sandinista de Libertação Nacional derrotou o ditador Anastasio Somoza em 1979. Desde então e até 1990, estabeleceu-se na Nicarágua um governo revolucionário, e Ortega foi o coordenador da junta de governo entre 1981 e 1985. Em 2006, depois de 16 anos na oposição, os sandinistas ganharam nas urnas com Ortega. Desde então, o líder esquerdista já se reelegeu em duas ocasiões, em 2011 e 2016.

A docente e escritora Rosario Murillo Zambrana também se opunha à tirania de Somoza e era secretária do célebre Pedro Joaquín Chamorro, diretor do jornal La Prensa, quando conheceu Ortega, em 1977. "A companheira Rosario" começou a ganhar poder com a volta do líder sandinista ao governo, em 2007. Desde então, como coordenadora do Conselho de Comunicação e Cidadania, ela dirige as reuniões de gabinete, coordena planos de emergência, organiza atos públicos e é a única voz do Executivo.



A candidatura dela para a vice-presidência foi vista na Nicarágua como uma tentativa de garantir a sucessão caso Ortega, que há anos sofre de uma doença misteriosa, não chegue ao fim do mandato. O fato de o casal ocupar os cargos mais elevados da hierarquia governamental é tão controverso como a eliminação do artigo constitucional que impedia uma segunda reeleição de Ortega.

Ortega e Murillo têm sete filhos, e ela tem mais dois. Um destes é Zoilamérica Narváez, que em 1998 acusou Ortega, então deputado, de abuso sexual em várias situações, desde que ela era uma criança. O processo não foi adiante, pois Ortega estava protegido pela imunidade parlamentar. Nos círculos políticos nicaraguenses afirma-se que o enorme poder da primeira-dama remonta a essa época, pois ela deu apoio incondicional ao marido, em meio ao escândalo, e bateu de frente com a própria filha.

Casal popular

"Os dois sempre trabalharam bem juntos e, com a chegada de Ortega à presidência da Nicarágua, Murillo passou a concentrar em suas mãos parte do poder institucional. Isso foi possível porque eles são um casal muito popular. Muitos os odeiam, mas uma grande parte da população os idolatra com um fervor impressionante", afirma o especialista Sebastian Huhn, da Universidade de Bielefeld.

Apesar das irregularidades registradas em processos eleitorais, as pesquisas mostravam que de fato havia um enorme número de pessoas dispostas a votar em Ortega e em Murillo. "Essa popularidade se explica porque, assim como em outros países latino-americanos, o ideal da democracia não é tão importante para as massas como a presença de uma pessoa forte e aparentemente bem intencionada à frente do leme", avalia Huhn.



Outro fator para a popularidade do casal é a inclusão de elementos religiosos e esotéricos no discurso oficial, o que não tem nada que ver com o discurso revolucionário sandinista. "Isso permite a eles estabelecer um contato mais próximo com as numerosas comunidades pentecostais da Nicarágua", acrescenta o especialista.

Desde que ganhou as eleições de 2006, Ortega tirou todo o proveito possível do sistema político, que é de cunho presidencialista. E a sua esposa fez o mesmo, já antes de ser mais do que somente a primeira-dama.

"É claro que são populares. Eles se esmeram em seduzir certa clientela com suas palavras e também com benefícios concretos. Afinal, até os governos populistas precisam apresentar resultados palpáveis para sobreviver", afirma a especialista Sabine Kurtenbach, do centro de estudos alemão Giga.

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