Irlanda vai às urnas dividida em referendo sobre aborto
Eleitores irlandeses devem decidir se querem manter ou acabar com uma das legislações sobre aborto mais restritivas da Europa. Se o "sim" à mudança constitucional vencer, regras futuras ainda não estão claras."Esta é uma votação que só acontece uma vez a cada geração", disse o primeiro-ministro da Irlanda, Leo Varadkar. Em um debate que divide a Irlanda tão profundamente, essa é uma das poucas afirmações com a qual todos podem concordar. Nesta sexta-feira (25/05), eleitores de todo o país vão ser consultados sobre a manutenção ou não das regras constitucionais que impedem o aborto no país.
Mas nos anos seguintes houve uma pequena flexibilização na proibição. Um dos empurrões foi um caso marcante em 1992, que envolveu uma adolescente de 14 anos conhecida apenas como "X", que engravidou após ser estuprada e vinha tendo pensamentos suicidas por causa da gestação.
A família da jovem entrou na Justiça, e a Suprema Corte do país entendeu que o aborto poderia ser permitido nos casos em que a gravidez representa um "real e substancial" risco para a vida da mãe.
Outros casos ocorreram desde então, mas a legislação sobre o aborto na Irlanda continua extremamente restritiva quando comparada a outros países da Europa. Mulheres que procuram abortos, seja depois de um caso de estupro ou se o feto não tem chances de sobrevivência fora do útero, não podem fazê-lo na Irlanda e têm que viajar ao exterior.
Mesmo a adolescente X havia pedido à Justiça apenas o direito de viajar ao Reino Unido para fazer o aborto, já que nenhum lugar da Irlanda poderia fazer o procedimento legalmente, mesmo em casos de estupro.
Recentemente, uma requerente de asilo que pretendia viajar para um aborto em outro país foi barrada e detida até que a sua gestação atingisse o ponto em que o parto poderia ser induzido.
Em 2014, uma mulher com morte cerebral foi mantida viva por aparelhos simplesmente porque estava grávida de 15 semanas. Embora não houvesse perspectiva de manter a criança viva até que o parto fosse viável, os médicos não tinham certeza se tinham permissão para desligar os aparelhos da mãe caso isso significasse também provocar a morte do feto.
Necessidade de legislação
Estes são os "casos difíceis" citados pelos defensores do "sim" como motivos para remover essa proibição de 1983. "A Oitava Emenda não funcionou", disse o ministro da Saúde da Irlanda, Simon Harris, à DW.
"Se o objetivo era parar o aborto, a emenda falhou sob qualquer ponto de vista. Todos os dias, nove mulheres irlandesas vão ao Reino Unido para pôr fim a uma gestação, e pelo menos três mulheres irlandesas tomam ilegalmente pílulas abortivas sem supervisão médica", diz o ministro. "É preciso legislar e colocar em prática um quadro jurídico e clínico em torno de tal tema sensível."
É por isso que Harris e seus colegas estão propondo a revogação da Oitava Emenda, substituindo-a por uma regra que elimina as restrições impostas ao Parlamento, para que os legisladores possam aprovar qualquer lei de aborto que considerem adequada. As propostas de Harris incluiriam permitir o aborto em casos de "anormalidade fetal fatal", bem como quando a gravidez representa um sério risco para a saúde da mulher.
Uma proposta mais controversa, no entanto, prevê permitir o aborto irrestrito nas primeiras 12 semanas de gravidez. O objetivo é atender vítimas de estupro, mas essa permissão também abriria espaço para o que os ativistas contrários ao referendo chamam de "abortos sociais" e para a perspectiva do término de uma gravidez por medo de deficiências não fatais.
"O que a Oitava Emenda faz, na verdade, é impedir que o médico interrompa a vida do feto – e é só sobre isso que votaremos na sexta-feira", disse Caroline Simons, consultora jurídica da campanha antiaborto Love Both (Ame a ambos).
Numa entrevista coletiva, Simons disse a repórteres que "não há absolutamente nenhuma evidência de que é mesmo necessário evitar uma complicação da gravidez ou uma ameaça à vida da mulher durante a gravidez matando direta e intencionalmente seu bebê".
Influência externa?
Embora o debate de 2018 não tenha repetido o tom virulento da consulta original de 1983, o referendo atual reabriu algumas cicatrizes antigas. Quase todos os estratos da sociedade estão divididos. Toda vez que um médico ou advogado declara apoio ao "sim", outro aparece para fazer lobby pelo "não" à mudança constitucional.
Embora apenas os cidadãos irlandeses possam votar, a natureza sensível do tema atraiu inevitavelmente a atenção de estrangeiros – e cada lado da questão acusa o outro de receber financiamento do exterior.
Grupos religiosos locais conseguiram a ajuda de ativistas americanos para ampliar seu alcance online. Foi revelado que um site, criado de maneira anônima para oferecer informações a eleitores indecisos, incorporava um pixel de rastreamento do Facebook que poderia ser usado para identificar eleitores indecisos. O dono da página – mais tarde identificado como um grupo religioso que recrutou ajuda americana para sua campanha – poderia então bombardear os eleitores indecisos com argumentos contra a proposta de mudança constitucional.
Ainda sob os efeitos da ressaca provocada pelo Brexit e pela eleição de Donald Trump no EUA, desta vez, as principais plataformas online se mostraram receosas de serem mais uma vez associadas a alegações de manipulação de eleitores por grupos estrangeiros. O Facebook acabou barrando todos os anúncios sobre o referendo direcionados aos eleitores irlandeses que haviam sido pagos por usuários estrangeiros.
O Google foi além, proibindo toda e qualquer publicidade do referendo – incluindo anúncios no YouTube, um meio legal e bastante usado pela campanha dos defensores do "não". Para os ativistas antiaborto isso foi demais. Os principais grupos que fizeram campanha pelo "não” acabaram divulgando uma declaração conjunta, classificando a decisão do Google de "uma tentativa de fraudar o referendo".
"O formato online era a única plataforma disponível para a campanha do 'Não' falar diretamente com os eleitores. Essa plataforma está sendo minada agora, para impedir que o público ouça a mensagem de um lado", diz o texto.
James Lawless, um deputado do partido oposicionista Fianna Fáil, discorda. Ele lembra que as leis eleitorais da Irlanda foram revistas pela última vez em 1992, uma época em que ainda não existia campanha online.
"O fato de o Google e o Facebook tomarem suas próprias decisões para restringir a publicidade acabou vetando um formato não regulamentado de campanha", disse ele à DW. "Seria preferível ter isso tudo regulamentado, mas, por outro lado, é melhor que fique offline se a perspectiva for o faroeste que teríamos de outra forma."
Dúvidas quanto a legislação futura
Outro fator estranho do referendo tem sido a confusão e o desentendimento sobre o que vem a seguir. O governo publicou um projeto de lei descrevendo as circunstâncias em que o aborto seria permitido, mas por enquanto tudo não passa de um esboço. Esse esboço ainda precisa ser transformado numa lei abrangente. Vai ser difícil.
O governo de Varadkar controla apenas um terço dos votos no Parlamento, e garantiu ainda aos deputados que eles estão livres para votar como quiserem quando a lei for finalmente apresentada. O segundo maior grupo parlamentar, o Fianna Fáil, assumiu uma posição semelhante. Já o Sinn Féin deve se reunir antes de divulgar sua posição.
Tudo isso significa que a decisão de sexta-feira pode ser decisiva para a Irlanda e talvez marcar o fim de uma luta de décadas pelos direitos das mulheres – ou acabar por fortalecer ainda mais uma das legislações de aborto mais restritivas do mundo ocidental. Mesmo que o "sim" vença, o futuro de uma lei sobre aborto da Irlanda permanecerá incerto.
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