'Há estratégia por trás de ataques a jornalistas no Brasil', diz diretor de ONG
O Brasil caiu quatro posições no último ranking de liberdade de imprensa da organização RSF (Repórteres Sem Fronteiras), referente a 2020. Foi o quarto ano consecutivo de queda.
Na 111ª colocação, o país entrou na "zona vermelha", que caracteriza um cenário difícil para a atuação jornalística, ao lado de países como Afeganistão, Emirados Árabes Unidos e Guatemala.
Em entrevista à DW Brasil, o diretor da RSF na América Latina, Emmanuel Colombié, afirma haver uma estratégia estruturada de ataques a jornalistas no país.
Ele identifica uma cadeia de atuação que vai do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) à sua base de apoiadores e cria um "ambiente tóxico" para a atuação dos profissionais de imprensa. "O presidente está tentando dizer que os jornalistas são responsáveis pelo caos do país", afirma.
O diretor da RSF chama atenção para a existência de um quadro estrutural de violência contra profissionais da informação no país. Nos últimos dez anos, o Brasil registrou 664 assassinatos de jornalistas e comunicadores. O número só não é superior ao observado no México.
Colombié destaca que profissionais que atuam em nível local, sobretudo radialistas, são os principais alvos, por denunciarem a atuação de grupos criminosos e casos de corrupção, sem contar com a mesma visibilidade de jornalistas da grande imprensa.
"Há o recrudescimento de uma situação grave de corrupção, violência e influência das milícias", observa.
Hoje, é celebrado o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa.
DW Brasil: No último ranking de liberdade de imprensa da RSF, o Brasil caiu quatro posições e entrou na zona vermelha de situação difícil. Que fatores levaram a essa situação?
Emmanuel Colombié: Infelizmente, a nova edição da Classificação Mundial da Liberdade de Imprensa mostra um mapa mundial cada vez mais sombrio. A posição que o Brasil passou a ocupar é indigna de uma democracia desse grau.
O país convive com problemas históricos e uma violência estrutural no campo da liberdade de expressão. O Brasil ainda é um país muito perigoso para jornalistas e comunicadores.
Além disso, tem o problema de judicialização da censura. Cada vez mais, jornalistas são alvo de processos judiciais abusivos, acusados de difamação, por exemplo.
Podemos falar também da violação constante do sigilo das fontes e da alta concentração da propriedade dos meios de comunicação. Geralmente, nas mãos de famílias que têm conexão direta com a classe política, industrial e, às vezes, com os poderes religiosos. Isso prejudica a qualidade do pluralismo, do debate democrático e a diversidade nesse horizonte midiático.
Agora, é importante mencionar que temos um jogo político muito preocupante. Desde a chegada de Jair Bolsonaro à presidência, os jornalistas trabalham em um ambiente tóxico.
O presidente, os filhos e vários de seus aliados dentro e fora do governo estão insultando, difamando jornalistas e meios de comunicação quase todos os dias. Qualquer ação da mídia que ameace os interesses do presidente e toque nos seus problemas desencadeia uma nova rodada de ataques verbais muito violentos, que obviamente irão fomentar um clima de ódio e desconfiança em relação aos jornalistas no país
É importante mencionar que esses ataques seguem uma estratégia bem definida, cada vez mais estruturada. Não são ataques isolados. Há um sistema organizado de atuação que começa com o próprio presidente e logo chega à família, ao governo e à base da militância, muito bem organizada nas redes sociais.
Eles transformam esses ataques em linchamentos digitais e, por vezes, infelizmente, ataques físicos contra jornalistas. Esse sistema organizado tenta, simplesmente, destruir a credibilidade dos jornalistas. Por isso, há um clima tóxico para os jornalistas no Brasil desde o início do governo.
DW Brasil: Como esse "ambiente tóxico" que você descreve ameaça a atuação de jornalistas, em termos concretos?
Emmanuel Colombié: A partir desse sistema organizado de ataques, vemos consequências dentro da própria sociedade sobre essa percepção sobre os jornalistas.
A família Bolsonaro tem um método parecido com o que observamos na época do Donald Trump nos EUA, assim como na Venezuela e na Nicarágua. Tentam apresentar a imprensa como inimiga do povo e do Brasil. A partir dessa narrativa, a partir da criação desse ambiente tóxico, os jornalistas vão estar cada vez mais vulneráveis.
A pandemia do coronavírus tem evidenciado ainda mais essa situação. O presidente está tentando dizer que os jornalistas são responsáveis pelo caos do país. De alguma forma, ele busca transformá-los em um bode expiatório. Ele quer esconder a sua incapacidade de lidar com a crise sanitária dizendo que é culpa dos jornalistas. Muita gente acredita nisso. Não à toa, vemos muitos ataques a jornalistas nos protestos e linchamentos digitais, principalmente contra mulheres
Tem sido também muito difícil para os jornalistas ter acesso a informações públicas sobre o tratamento da crise pelo governo federal. Tem um grande problema de acesso à informação, uma falta de transparência do governo nessa gestão da crise. Cria-se um desafio adicional para os jornalistas em busca de informações confiáveis sobre o número de mortes e de vacinados.
É um problema bem significativo. Além disso, o próprio presidente e órgãos institucionais, como a Secom (Secretaria Especial de Comunicação Social), difundiram mentiras e notícias falsas sobre o tratamento do coronavírus. Eles promoveram a cloroquina e outros remédios cuja eficácia no combate a esse vírus nunca foi comprovada.
Portanto, em meio a ataques permanentes e à falta de acesso a informações, os jornalistas têm que relatar os fatos, porque o presidente é um mentiroso compulsivo, que difunde notícias falsas pessoalmente e por meio de órgãos oficiais.
Isso é gravíssimo, são desafios muito complexos. Queria saudar os jornalistas brasileiros que estão trabalhando em um contexto tóxico, muito delicado.
DW Brasil: O crime organizado tem se fortalecido no Brasil, com a expansão das milícias nos centros urbanos e dos grupos de pistoleiros no interior e no campo. Como esse contexto afeta a liberdade de imprensa?
Emmanuel Colombié: Como eu falei, há uma situação estrutural de violência contra a imprensa e de vulnerabilidade, sobretudo, dos comunicadores e jornalistas independentes, afastados dos grandes centros urbanos.
A maioria dos casos de jornalistas assassinados nos últimos anos era de radialistas com atuação local. Longe das grandes cidades, eles denunciavam a atuação de milícias e grupos violentos em programas de opinião.
É importante falar desse jornalismo comunitário, local. Eles estão difundindo a informação de interesse público e, por fazer esse trabalho fundamental, são atacados, sem que gozem do mesmo nível de visibilidade e proteção que os jornalistas dos grandes veículos nas capitais
Há o recrudescimento de uma situação grave de corrupção, violência e influência das milícias. Existe também o problema de autocensura, justamente gerado pelo controle de alguns mercados por grupos de delinquentes com acesso a poderes políticos. Os jornalistas locais geralmente são os primeiros alvos dessas milícias.
DW Brasil: Você acredita que a pandemia trouxe uma valorização maior do jornalismo profissional pelo público?
Emmanuel Colombié: Eu acho que não. Há mais de um ano, os jornalistas são aqueles que vêm trazer as notícias ruins. As mensagens do momento são terríveis: notícias sobre mortes, contaminação. Já havia, no Brasil, uma percepção frágil da importância do jornalismo.
Estamos em uma época de desinformação, com um monte de fake news circulando. Vários jornalistas, comunicadores e políticos são acusados de difundir informações falsas. Esse conteúdo circula de forma muito mais rápida que as informações verdadeiras. É um desafio importante pensar em como viralizar as informações verdadeiras
Parte da nossa análise é dizer que o jornalismo, neste momento, é a melhor vacina contra a desinformação. Mas é preciso haver um trabalho pedagógico junto às audiências.
Em primeiro lugar, deve-se deixar claro que podem ter interesses privados por trás dos jornais. É importante que o público saiba o que tem por trás da informação, o que dialoga com essa ideia de combater eficientemente a propagação de notícias falsas.
Além disso, falta um discurso público, por parte dos governantes, de valorização da importância de ter uma imprensa livre, crítica e plural, para ter um debate democrático são e uma diversidade de opiniões que são positivos para o país.
Mas temos, aqui no Brasil, um presidente que propõe essa narrativa anti-imprensa. Infelizmente, muitas pessoas acreditam que os jornalistas estão trabalhando contra os interesses do país. Portanto, é preciso haver esse trabalho educativo para dizer que os jornalistas estão aqui para relatar fatos e informar.
No momento de crise sanitária, o direito de ser informado e informar é tão importante quanto o direito à saúde, pois a informação pode salvar vidas. Com um presidente que espalha mentiras e desinformação sobre a crise, o trabalho dos jornalistas se tornou ainda mais importante. É vital
A imprensa precisa também se olhar no espelho e avaliar se está sendo responsável e respondendo a essa crise de confiança com mais jornalismo de qualidade, ético, com fatos comprovados, para evitar justamente ser atacada nesse campo de desinformação.
Um trabalho jornalístico bem feito não deveria sofrer nenhum tipo de contestação ou ataque. Infelizmente, ainda acontece, mas uma das respostas deve vir também dos próprios jornalistas, para responder a essa crise de confiança.
Daqui até o fim do mandato do Bolsonaro, vai ser assim. Vamos ter essa narrativa anti-imprensa, a circulação em todos os canais da base de apoiadores do presidente dessa ideia de que jornalistas são inimigos do povo e estão espalhando notícias falsas para derrubar o presidente. Sabemos que não é assim.
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