Entenda a denúncia de genocídio da África do Sul contra Israel
A Corte Internacional de Justiça (CIJ) começou a analisar nesta quinta-feira (11/01) uma ação apresentada pela África do Sul contra Israel, em que este é acusado de genocídio contra o povo palestino na Faixa de Gaza.
Na petição de 84 páginas, o país africano afirma que "os atos e omissões de Israel [...] têm caráter genocida, pois foram cometidos com a intenção específica [...] de destruir os palestinos em Gaza".
Tanto a África do Sul quanto Israel são membros da Convenção contra o Genocídio de 1948. O tratado internacional - criado após a Segunda Guerra Mundial por causa do Holocausto, genocídio de judeus pelos nazistas - obriga seus signatários a prevenir e punir o crime de genocídio.
A Convenção define genocídio como a execução de ações com a intenção de eliminar, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.
A iniciativa sul-africana, que recebeu apoio do Brasil, foi motivada pelas ações militares de Israel contra os palestinos em retaliação aos ataques terroristas do grupo fundamentalista islâmico Hamas em 7 de outubro, que deixaram 1.200 mortos em território israelense.
No mesmo dia, o Estado judaico declarou guerra ao Hamas, considerado uma organização terrorista pela União Europeia, Estados Unidos e outros países e que controla a Faixa de Gaza desde 2007.
Em pouco mais de três meses, mais de 23 mil palestinos foram mortos em meio a intensos ataques israelenses em Gaza, a maioria mulheres e crianças. Mais de 80% da população do enclave foi obrigada a se deslocar, e a situação humanitária piora a cada dia.
O que é a CIJ?
Em meio às hostilidades contra civis, a África do Sul acionou a Corte Internacional de Justiça, sediada em Haia, na Holanda, em 29 de dezembro de 2023.
Fundada em 1945, a CIJ é o principal órgão judicial da ONU. Diferentemente do Tribunal Penal Internacional (TPI), que lida com responsabilidades criminais individuais, a Corte julga disputas entre Estados. É composta por 15 juízes, cada um de um país.
Nesta quinta (11/01) e sexta-feira, a CIJ analisará a petição sul-africana e ouvirá os dois países.
O que será analisado agora?
A CIJ deverá decidir se concede o pedido da África do Sul em relação a medidas provisórias. Essas medidas são uma espécie de alívio emergencial, que seria aplicado enquanto o caso estiver pendente, explica Michael Becker, professor assistente de Direito Internacional dos Direitos Humanos no Trinity College, em Dublin, em entrevista à DW.
A África do Sul solicitou uma série de medidas provisórias à CIJ. Entre elas a de que Israel "suspenda imediatamente suas operações militares contra Gaza", bem como não se envolva em atos de genocídio e tome medidas razoáveis para evitá-lo.
A ação ainda pede que os israelenses permitam a entrada de ajuda humanitária no enclave, e que relatórios detalhando todas essas medidas sejam enviados regularmente à Corte em Haia.
Por que a África do Sul?
Na petição enviada ao tribunal internacional, a África do Sul menciona "sua própria obrigação - como Estado-membro da Convenção contra o Genocídio - de prevenir o genocídio".
O país é um crítico ferrenho de Israel. Há anos, o governo sul-africano tem comparado as políticas israelenses em Gaza e na Cisjordânia com o antigo regime de segregação do apartheid na África do Sul. Israel rejeita essas alegações.
A petição da África do Sul na CIJ também se refere a essa ideia. O texto menciona um "histórico de apartheid" em referência ao tratamento israelense ao povo palestino.
O que diz Israel?
O governo israelense nega firmemente as acusações de genocídio apresentadas à CIJ.
"Israel rejeita com repulsa a difamação de sangue espalhada pela África do Sul e sua petição", escreveu o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores de Israel, Lior Haiat, na plataforma X (antigo Twitter).
As alegações também foram rejeitadas pelo primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, e pelo presidente Isaac Herzog. Em rede social, Herzog afirmou ter dito ao secretário de Estado americano, Antony Blinken, que, perante a Corte em Haia, seu país "apresentará com orgulho [e] clareza o direito fundamental de Israel de se defender".
Israel decidiu participar das audiências em Haia e enviar o ex-presidente da Suprema Corte israelense Aharon Barak como juiz ad hoc. Quando um Estado é parte de um caso na CIJ e não tem um juiz de sua nacionalidade entre os membros da Corte, ele pode enviar um juiz ad hoc a esse caso específico, que participa das decisões em condição de total igualdade com os demais colegas.
Para o especialista em direito internacional Becker, a decisão de Israel de participar das audiências é "algo bom para a justiça internacional", uma vez que, no passado, o país geralmente preferiu ficar de fora de processos do tipo.
Qual pode ser o resultado?
O resultado do processo preliminar está totalmente em aberto. O tribunal pode decidir a favor ou contra as medidas provisórias ou, em teoria, até mesmo concluir que não está encarregado do caso.
Se a CIJ se posicionar a favor das medidas provisórias, a corte não precisa necessariamente seguir as propostas da África do Sul, mas pode também formular suas próprias medidas, explica Becker.
O especialista acredita que se trata de um caso forte para que o tribunal ordene medidas provisórias, mas não espera que elas sejam tão abrangentes quanto as solicitadas pelos sul-africanos.
Em relação ao pedido sobre a entrada de ajuda humanitária em Gaza, Becker acredita ser "relativamente provável" que a Corte oriente Israel a garantir que a assistência chegue aos palestinos "em quantidades muito maiores do que as atuais".
Nesta quinta, as audiências tiveram início com a África do Sul. Na sexta-feira, a delegação israelense terá a chance de fazer sua declaração. Espera-se que uma decisão sobre a solicitação de medidas preliminares seja emitida com relativa rapidez, possivelmente dentro de algumas semanas.
Mas esse deve ser apenas o início de um longo processo. Se o caso passar para o próximo estágio, uma decisão sobre a substância da petição - a questão sobre se Israel cometeu ou não os atos alegados - pode levar anos.
E o Brasil?
Na quarta-feira, o Brasil anunciou apoio à petição da África do Sul em nota emitida pelo Itamaraty, horas depois de um encontro do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com o embaixador da Palestina no Brasil, Ibrahim Alzeben.
"À luz das flagrantes violações ao direito internacional humanitário, o presidente manifestou seu apoio à iniciativa da África do Sul de acionar a Corte Internacional de Justiça para que determine que Israel cesse imediatamente todos os atos e medidas que possam constituir genocídio ou crimes relacionados nos termos da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio", diz o comunicado.
"O presidente Lula recordou a condenação imediata pelo Brasil dos ataques terroristas do Hamas em 7 de outubro de 2023. Reiterou, contudo, que tais atos não justificam o uso indiscriminado, recorrente e desproporcional de força por Israel contra civis."
Não é a primeira vez que o governo Lula adota uma postura crítica contra a ofensiva israelense em Gaza. Ele chegou a comparar os ataques contra palestinos com "atos de terrorismo".
De certa forma, o apoio à petição sul-africana destoa da posição de neutralidade que o Brasil adota historicamente, de buscar equilíbrio entre partes em conflito e se apresentar como possível mediador. Esse é um papel que Lula tenta exercer não só na guerra no Oriente Médio, mas também na Ucrânia.
Além disso, a decisão distancia o Brasil da posição de países do Ocidente e evidencia uma aproximação maior do Brics, grupo de países emergentes do qual Brasil e África do Sul fazem parte.
O governo brasileiro defende a chamada solução de dois Estados: um Estado palestino economicamente viável convivendo lado a lado com Israel, em paz e segurança, dentro de fronteiras mutuamente acordadas e internacionalmente reconhecidas, que incluem Gaza e a Cisjordânia. Autor: Lucia Schulten