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Romênia investiga morte de centenas de crianças deficientes durante comunismo

David Buimovitch/AFP Photo
Imagem: David Buimovitch/AFP Photo

Por Raúl Sánchez Costa

Em Bucareste

24/07/2017 06h03

Calmantes e outros medicamentos forçados, banhos gelados, camisas de força e maus-tratos contínuos. Milhares de crianças romenas com incapacidade - tutelados pelo Estado durante a época comunista - sofreram este horror cotidiano. Agora, o Ministério Público investiga a morte de 771 deles por negligência.

O centro público que investiga os crimes do comunismo apresentou recentemente uma denúncia devido às péssimas condições dos menores internados nos hospitais de Cighid, Pastraveni e Sighetu Marmatiei, localizados em regiões pouco povoadas e afastadas das cidades, e deve anunciar mais nos próximos meses.

"Somente pesquisamos em três dos 26 hospitais que existiram, razão pela qual acreditamos que o número real de vítimas, tantos fatais como sobreviventes, pode superar o número de 10.000 crianças", explicou à Agência Efe Florin Soare, historiador do Instituto de Crimes do Comunismo (IICCMER).

A denúncia é contra cerca de cem pessoas, desde diretores e enfermeiros até responsáveis políticos que permitiram essa situação entre 1966 e 1989.

O regime comunista, segundo o IICCMER, dividia as crianças tuteladas com doenças em três categorias: recuperáveis, parcialmente recuperáveis e irrecuperáveis. Estes últimos eram aqueles com maior grau de incapacidade e os doentes crônicos.

Os jovens das duas primeiras categorias tinham comida, roupa e calefação; os da última, ao contrário, foram "vítimas de um genocídio", disse Soare.

Na investigação aberta pelo Ministério Público não há indícios de um plano para eliminar menores com incapacidade, mas sim de negligência e maus-tratos, e as apurações seguem esta linha.

A má alimentação junto com péssimas condições higiênicas, falta de assistência médica adequada e total isolamento do exterior eram o dia a dia dos menores nestes abrigos.

"Só na minha instituição quase todas as crianças - cerca de 350 por ano - adoeciam física e psiquicamente", explicou à Efe Izidor Ruckel, a única pessoa que contou de forma pública o seu calvário.

Muitas das vítimas não querem voltar a lembrar dessa parte da sua vida ou denunciam a situação apenas de forma anônima.

Em 1980, quando Ruckel nasceu, o aborto estava proibido há 14 anos. O ditador Nicolae Ceausescu o ilegalizou em 1966, apenas um ano após chegar ao poder, com a ideia de aumentar a natalidade.

Ceausescu, que restringiu o acesso a contraceptivos, chegou a dizer que o feto era uma "propriedade da sociedade" e qualificou quem não tinham filhos de "desertores".

Após proibir-se o aborto, os casos de abandonos dispararam, especialmente de menores com problemas físicos, e o próprio Estado assumiu a tutela em muitos casos, afirmando que os menores incapacitados receberiam melhor tratamento nestes centros.

"Os meninos medicados em vez de serem curados pioravam ou, inclusive, em muitos casos a forte medicação lhes causou a morte", explicou Ruckel, que esteve internado no centro de Sighetu Marmatiei, lembrando dele como "um campo de extermínio".

O mau estado dos remédios ou as grandes doses que lhes ministravam para ter as crianças em um estado de letargia provocavam náuseas e grandes dores.

Após tomar os medicamentos, lembrou Ruckel, "vomitava e me doía muitíssimo a cabeça, além de me deixarem na cama durante horas".

Ruckel, internado com somente três anos após um tratamento inadequado em um hospital que o deixou com incapacidade em uma perna, relatou que os cuidadores davam banho em três ou quatro meninos ao mesmo tempo em pequenas banheiras com água fria e suja.

Entre outras situações degradantes, lembrou que as crianças que queriam ir ao banheiro durante as refeições eram obrigadas a fazer suas necessidades na frente de todos em um canto da sala de jantar utilizando o seu próprio prato como recipiente.

"Não nos deram nenhuma educação, nos trataram como se fôssemos incapazes de fazer nada. Lembro que uma das crianças batia a cabeça na parede e o amarraram à cama ou botavam nela uma camisa de força", relembrou.

Além disso os maus-tratos eram contínuos: "Recebi uma surra de uma enfermeira, a que mais batia nas crianças, por não ter conseguido que meus colegas ficassem calmos enquanto os vigiava; pensei que ia me matar".

Ruckel confessou que devido às penalidades que viveu lhe custou habituar-se à sua nova vida nos Estados Unidos, após ser adotado em 1991.

Em 2001 conheceu seus pais biológicos e soube que não tinha nascido com uma incapacidade, como achava até então, e que o regime comunista lhes tirou a tutela para interná-lo.

"Uma incapacidade era uma vergonha naquela época", afirmou Ruckel, porque, segundo o regime, impedia de trabalhar e ser produtivo.

Catalin Constantinescu, conselheiro jurídico da IICCMER, acredita que a investigação do Ministério Público esclarecerá este obscuro capítulo e que os responsáveis serão condenados.

"Também temos a esperança de que mais vítimas falem contra eles (os supostos responsáveis) conforme vão sendo reveladas novas informações", finalizou Constantinescu.