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Coveiro dos corpos esquecidos enterra face amarga da migração no Mediterrâneo

22/11/2017 06h01

Natalia Román.

Zarzis (Tunísia), 22 nov (EFE).- A vários quilômetros da praia de Zarzis, cidade da Tunísia que fica próxima à fronteira com a Líbia, um amplo terreno de areia mexida com pás e pela chuva esconde a face mais amarga, mas também solidária, da tragédia da migração no Mediterrâneo.

Gerenciado por Marzoug, um pescador de 52 anos desempregado, o cemitério improvisado oferece descanso eterno a dezenas de pessoas que perderam a vida no mar em busca de um eldorado.

"Qualquer dia destes, algum dos corpos vai acabar parando na superfície", lamentou Marzoug à Agência Efe enquanto andava, cabisbaixo, entre os túmulos que cavou.

Até 2014, aqueles que sucumbiam na travessia do Mediterrâneo - na maioria de origem subsaariana - recebiam uma sepultura em um canto do cemitério local destinado aos não foram identificados.

Mas as famílias se queixaram, primeiro, da falta de espaço, e depois pela presença de desconhecidos perto de seus entes queridos.

Para evitar disputas, a Câmara Municipal cedeu um terreno vizinho, um antigo lixão que um grupo de voluntários limpou e preparou como pôde.

Hoje a área é um cemitério praticamente anônimo, assim como os que ocupam suas sepulturas, algumas marcadas por tijolos e pedras que as fortes chuvas dos últimos dias não conseguiram arrastar. Outras, por simples sacas.

"Estas pessoas não têm ninguém aqui, somos sua família. Elas têm direito de serem enterradas com dignidade e respeito ", disse Marzoug, voluntário do Crescente Vermelho.

Ele contou que quando a Guarda Costeira recebe um alerta de naufrágio por parte de pescadores, vai atrás, com uma caminhonete, para buscar corpos de vítimas.

"A prefeitura não tem recursos, e não podemos permitir que sejam levados em um caminhão de lixo", ressaltou.

Depois, com "luvas, roupas descartáveis e desinfetante" que algumas ONGs doam, ele limpa um corpo e o enterra com uma pá. Sem amostras de DNA, análises de um legista. Um simples e anônimo corpo devolvido pelo mar.

"Quando enterro uma pessoa, não vejo sua religião ou a cor de sua pele. Se fossem encontrados uma jovem loira ou um homem de olhos azuis, todo mundo se mobilizaria", afirmou.

Marzoug disse que nos últimos dois anos sepultou centenas de pessoas, incluindo crianças, e que há cenas de extrema tristeza em sua memória.

"São imagens que não poderei esquecer, como a de uma mulher jovem que abraçava um menino de três ou quatro anos, e outra que protegia seu bebê com um pedaço de madeira", narrou.

A migração irregular a partir das praias do sul do país se multiplicou nos últimos meses, em grande parte por causa do deslocamento das pequenas máfias do litoral oeste da Líbia e também pela deterioração contínua da própria Tunísia, imersa em uma grave crise econômica e social que mistura má gestão pública, corte de direitos e desemprego, consequências do fracasso da revolução de 2011.

Só no mês de outubro, o número de profissionais liberais e de jovens desempregados, sem esperança de futuro, que abandonaram o país - legal ou ilegalmente - triplicou em relação ao ano anterior.

"O que vão fazer aqui?", questionou Marzoug, ele mesmo pai de dois filhos que cruzaram o mar de forma clandestina, o primeiro há um ano e meio, e o segundo, cinco meses atrás.

"Só me disseram quando chegaram ao outro lado. Na primeira vez me afetou muito, mas depois pensei que Deus me recompensa pelo meu trabalho", afirmou.

Ambos tiveram sorte e trabalham agora na França, trazendo um alívio para Marzoug, que sofre pela dor dos que ficam no caminho - "Meus filhos conseguiram, mas e os outros?", lamentou.

"Quando você fala com os jovens que sobreviveram e pergunta por que arriscaram suas vidas no mar, te dizem: 'eu já estava morto no meu país'. Eles preferem morrer na água do que na sua terra", concluiu, antes de expressar em voz alta um sonho.

"Um cemitério de verdade. Com muros, um portão, um espaço de serviço, outro para a memória das vítimas, com flores e árvores", descreveu.

O Crescente Vermelho na Tunísia lançou uma campanha na internet para arrecadar fundos. Em 24 horas, arrecadou 800 euros da meta de 35 mil para construir o que Marzoug pede em oração diariamente enquanto olha o mar.