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Sangomas LGBT desafiam preconceitos a partir de tradição africana ancestral

03/10/2019 10h17

Nerea González.

Katlehong (África do Sul), 3 out (EFE).- "Antes de virar sangoma, eu já era lésbica", explicou com franqueza Badanile Maci, antes de acender um incenso e se ajoelhar para chamar os ancestrais. Essa jovem curandeira tradicional sul-africana, assim como muitos da sua geração, decidiu viver sua sexualidade de forma natural.

Em sua sala de consultas, localizada no antigo gueto negro de Katlehong, a leste de Johanesburgo, Maci recebe aqueles que buscam seus conselhos e ajuda, seguindo as tradições milenares da cultura Bantu no sul da África.

Rodeada por seus instrumentos e plantas medicinais, Maci se transforma em uma espécie de médium, em um canal de comunicação que conecta o mundo terrestre ao plano dos ancestrais e do divino.

"Eu tinha 15 anos quando senti o chamado, era muito jovem", contou à Agência Efe Maci, ou Gogo Mpumelelo, como é conhecida pelo nome ancestral.

O saber dos sangomas - figuras ainda hoje bastante comuns e frequentadas nas comunidades negras da África meridional - abrange desde tópicos de saúde até a adivinhação e interpretação dos sonhos.

Mas não é qualquer pessoa que pode se tornar sangoma. Trata-se de uma posição muito respeitada e reservada aos que nascem com um dom e sentem o chamado para mergulhar nos segredos da medicina tradicional, quando aprenderão a invocar e se comunicar com o mundo ancestral.

Quando Maci sentiu seu chamado, em plena adolescência, tinha também outra coisa bastante clara sobre si mesma: ela não gostava de homens, uma situação complicada na África, especialmente em alguns setores da sociedade negra que tendem a ser conservadores em relação à sexualidade.

Inclusive na África do Sul (onde a discriminação sexual é proibida constitucionalmente), as atitudes mais reacionárias - como os estupros corretivos - são muitas vezes mais comuns que a tolerância e a aceitação.

Apesar de tudo, a África do Sul está na vanguarda no continente no que diz respeito aos direitos LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais).

Não muito longe, na Zâmbia, a homossexualidade é crime, assim como em muitos outros países da África subsaariana, onde até chefes de Estado chegaram a afirmar que o assunto não tem lugar nas sociedades africanas ou que sua aceitação é uma imposição do Ocidente.

Entre os sangomas, no entanto, há uma alta prevalência de gays e lésbicas, segundo a própria Maci. A afirmação é corroborada também por Sphiwe, um sangoma gay e "irmão espiritual" de Maci, que veio para ajudá-la nos rituais e, também, compartilhar sua história.

"Eu adoraria ajudar as pessoas que gostariam de ser do mesmo jeito que eu me expresso. Você nasce gay e deveria se sentir orgulhoso de quem você é", afirmou.

"Até mesmo os nossos tataravós e avós eram gays e lésbicas. Só que eles escondiam. Mas os tempos mudaram. Tem gente que pensa que se você é gay ou lésbica, você tem um espírito ruim. Não é assim. Isso são sentimentos. É o jeito que você se sente, e todo mundo deveria ter direito a sentir o que quiser sem ser julgado", ressaltou Maci.

No entanto, o fato de isso ser comum entre os sangomas faz com que outra ideia negativa sobre a homossexualidade deva ser combatida: a crença de que, quando uma pessoa se converte, vira homossexual por causa da conversão ou que, no mínimo, existe uma correlação entre a orientação sexual e a probabilidade de sentir o chamado.

"Muita gente pensa que se você é gay, será sangoma. Não. Tem gente que é heterossexual e tem gays e lésbicas, mas as pessoas precisam levar em conta que ser gay não é uma doença, não é algo que você adota, muito menos algo que você faz para se juntar ao grupo", argumentou Sphiwe (ou Gogo Sarah, segundo seu nome ancestral).

Ambos concordam que, se por um lado ser sangoma não os livra do perigo da homofobia, por outro, sua orientação sexual não interfere em suas práticas. São simplesmente duas realidades que coincidem.

"Ser lésbica não afeta meus caminhos ancestrais nem nada nesse sentido. Minhas precursoras não são lésbicas e não confundo as duas coisas. As pessoas vêm a mim como vão a qualquer sangoma. Quando vêm à minha sala de consulta, elas não querem saber da minha vida pessoal. Elas vêm em busca de ajuda", garantiu Maci. EFE

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