Depois do adeus à Rússia 2018, Copa do Catar entra no centro das atenções
Mariana Durão, correspondente da RFI em Dubai
Por enquanto, o Comitê Supremo para Entrega e Legado do Catar (SC) – órgão responsável pela infraestrutura da Copa – ainda trabalha com um orçamento de US$ 6,5 bilhões. Obras como a expansão da infraestrutura rodoviária e a construção do metrô nacional ficam de fora porque serão, segundo o SC, realizadas dentro do programa Visão Nacional 2030 do governo. Na Rússia, a estimativa é que os gastos tenham passado de U$ 11 bilhões, sendo US$ 3,5 bilhões investidos em estádios.
No caso do Catar, a cifra bilionária engloba a construção de oito estádios: Al Bayt, Al Rayyan, Al Thumama, Al Wakrah, Education City, Lusail, Ras Abu Aboud e Khalifa International, o primeiro a ficar pronto, em maio de 2017. A meta do comitê é entregar todos até 2020, podendo terminar Al Wakrah e Al Bayt ainda neste ano. Todos os estádio são modulares, isto é, ao fim da Copa seu número de assentos será reduzido à metade para evitar criar “elefantes brancos”.
Espalhada pelas 11 cidades-sede da Copa da Rússia, a delegação do Catar deve compilar as melhores práticas dos anfitriões de 2018 em termos de planejamento e realização do evento em um relatório. Os enviados do país do Golfo também tiveram como missão desempenhar o papel de embaixadores do Catar, divulgando seus planos para a primeira Copa do Mundo da Fifa no Oriente Médio.
Segurança no foco da organização
O professor da FGV e consultor da ONU para a Copa do Mundo FIFA 2014, Pedro Trengrouse, acompanhou a apresentação do Comitê Supremo do Catar na Conferência sobre o Futuro do Esporte, realizada em Moscou, na semana passada. Ele conta que o representante do comitê local enfatizou que a infraestrutura para o evento está praticamente pronta. Entre as possíveis lições do Mundial da Rússia, Trengrouse destaca a criação do Fan ID, documento oficial emitido pelo governo para todos os torcedores e que foi decisivo em questões de segurança, por possibilitar a identificação precisa dos participantes do evento.
“Já se comenta que no Catar, além de identificação semelhante à Copa da Rússia, imagina-se algum tipo de pulseira com localizador geo-referenciado para que se possa saber em tempo real onde cada torcedor se encontra durante o evento”, diz o professor da FGV.
O Fan ID foi também o passaporte para os torcedores usarem os trens gratuitamente para deslocamentos entre as cidades-sede da Copa. A liberação das catracas nos transportes públicos – trens, ônibus e metrô – em dias de jogo foi uma medida bem sucedida e que poderia entrar na lista de boas práticas do Catar. Com dimensões bem mais modestas que a Rússia, entretanto, o país do Golfo promete uma logística em que o deslocamento entre os diferentes estádios levará no máximo uma hora. Isso vai permitir que os torcedores possam ver mais de uma partida por dia.
VAR deve ser aprimorado em 2022
Outro ponto alto da Copa da Rússia e que poderá ser aprimorado em 2022 é o uso do VAR, Árbitro Assistente de Vídeo, já considerado uma revolução da Copa da Rússia. Com atraso em relação a outras modalidades, a Fifa adotou a tecnologia que permite aos árbitros e aos assistentes de vídeo – que acompanham as imagens registradas por câmeras posicionadas em todo o campo – conferir lances duvidosos como um pênalti ou um cartão vermelho.
Hoje o juiz pode acionar o VAR e vice-versa. Depois de episódios polêmicos na Rússia, deve haver pressão por regras mais claras para o uso do VAR. Uma das discussões que podem ganhar eco na Copa do Catar é a adoção do chamado desafio de vídeo, que dá aos técnicos o direito de acionar a tecnologia por um determinado número de vezes no jogo.
A despeito de questões operacionais, talvez a principal lição da Copa organizada pelo Kremlin esteja na esfera do marketing. Envolta em questões espinhosas como o apoio ao presidente sírio, Bashar Al-Assad, suspeitas de manipulação eleitoral nos Estados Unidos, o episódio do ex-espião russo envenenado no Reino Unido e problemas sociais como a homofobia, o abismo entre os gêneros e o racismo, a Rússia de Vladimir Putin acabou cavando espaço para notícias positivas durante o evento. Torcedores viram os russos como bons anfitriões, a logística funcionou bem e o surpreendente desempenho da seleção local conseguiu aumentar o interesse da sociedade russa pela Copa.
Desafios do Catar para 2022
Dono do maior PIB per capita global graças a generosas reservas de petróleo e gás natural, o rico Catar também enfrenta desafios significativos fora das quatro linhas. O principal deles é o embargo econômico promovido desde junho do ano passado por Arábia Saudita, Bahrein, Egito e Emirados Árabes Unidos sob alegações de que o vizinho estaria apoiando o terrorismo.
Embora a economia do Catar venha resistindo, o bloqueio impõe dificuldades logísticas por fechar a fronteira terrestre com a Arábia Saudita, rotas marítimas e o espaço aéreo nos países que romperam relações com Doha, o que tornará as viagens dos fãs do futebol mais longas e, provavelmente, mais caras.
Em outubro passado, um relatório vazado da consultoria Cornerstone Global afirmou que a crise trazia um "risco político de o Catar não sediar a Copa do Mundo da FIFA de 2022". Na época, o Comitê Supremo do Catar reagiu questionando os motivos para a elaboração do relatório. Sobre o bloqueio, o órgão descarta que sua manutenção mude os planos para o torneio e diz que até aqui “não houve impacto no cronograma de entrega” das obras.
Trengrouse, da FGV, acredita que a Copa pode ser uma oportunidade para resolver as questões diplomáticas da região. Sua hipótese passa pela ampliação do número de seleções participantes de 32 para 48, envolvendo outros países e transformando a Copa do Catar na Copa do Oriente Médio.
Calcanhar de Aquiles: direitos do trabalhador
A questão trabalhista é o outro calcanhar de Aquiles do Catar. Em março de 2016 a Anistia Internacional divulgou um relatório denunciando que migrantes que trabalhavam na construção do Khalifa International Stadium sofreram abusos em trabalho forçado, atuando em condições sub-humanas e sem poderem se desligar dos contratantes.
A organização pressiona pela revisão do sistema de patrocínio “kafala” do Catar, em que os trabalhadores migrantes não podem mudar de emprego ou sair do país sem permissão do seu empregador. Em outubro do ano passado, o Catar assinou um programa de cooperação técnica com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) para alinhar suas práticas e leis aos padrões internacionais e direitos humanos. O acordo cobre pontos como reforma da “kafala”, acesso à Justiça, saúde e segurança.
“A Anistia Internacional está esperançosa de que, se totalmente implementado, sem diluição ou atraso, o projeto da OIT oferece uma oportunidade genuína para acabar com a exploração de mão de obra crônica no Qatar. No entanto, até o momento, não foram dados passos claros na implementação desse processo. O governo do Catar ainda precisa esclarecer como e quando cumprirá o compromisso de reformar seu sistema de patrocínio”, disse à RFI Brasil May Romanos, pesquisadora da Anistia Internacional, responsável por direitos dos migrantes no Golfo.
Em junho, o secretário geral do Comitê Supremo do Catar para a Copa, Hassan Al Thawadi, disse durante a 38ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas que a Copa do Mundo tem sido um catalisador para mudanças sociais positivas no país, incluindo o bem-estar dos trabalhadores. Além de citar reformas em curso, o executivo mencionou esforços empreendidos pelo comitê e seus contratados para reembolsar taxas injustas de recrutamento pagas por trabalhadores migrantes envolvidos em projetos da Copa do Mundo. O valor a ser devolvido é estimado em aproximadamente US$ 11,8 milhões.
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