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Com Biden, Brasil tem que abrir mão de política externa ideológica, dizem analistas

10/11/2020 08h42

A vitória de Joe Biden traz indagações mundo afora sobre a relação dos Estados Unidos com outros países, especialmente com aqueles governados por presidentes que apoiavam Donald Trump, como o Brasil. Distensão e acordos com o novo presidente americano podem ajudar vendas do Brasil, dizem analistas, mas Bolsonaro terá que ter uma política externa menos ideológica.

Por Raquel Miura, correspondente da RFI em Brasília

De uma maior previsibilidade nas relações internacionais ao destravamento das negociações na Organização Mundial do Comércio, são várias as expectativas positivas dos empresários brasileiros com a ascensão de Joe Biden ao governo americano e a derrota de Donald Trump. Mas há também uma dose de incerteza em alguns setores em torno da esperada retomada do comércio dos Estados Unidos com a China para saber o valor dos subsídios a commodities americanas que estará embutido nesse acordo e os possíveis reflexos disso nas exportações brasileiras.

Analistas ouvidos pela RFI também apostam que a gestão Biden vai exigir mais empenho do Brasil nas questões ambientais, uma mudança de postura do governo Bolsonaro e um discurso do presidente que não prejudique as vendas externas do país.

"Tenho a impressão de que a questão ambiental será um dos calcanhares de Aquiles entre Brasil e Estados Unidos. O próprio presidente Biden já citou a questão amazônica. Deve haver por parte do governo brasileiro uma mudança grande para atender os interesses do setor exportador, especialmente o agronegócio", afirmou o consultor de comércio internacional Michel Alaby.

Para ele, ainda que pairem algumas dúvidas sobre a postura de Biden na concessão de ajuda a produtores locais, a vitória do democrata traz um cenário de maior estabilidade nas relações entre os países e isso favorece o comércio mundial. "Na realidade eu acho que nós teremos uma maior previsibilidade porque Biden prometeu reativar a OMC e busca o multilateralismo. O que me preocupa é se ele dará subsídio à produção agrícola dos Estados Unidos. Quanto à situação com a China, que ele vai privilegiar um acordo com os chineses para favorecer as exportações de soja dos americanos. E a China precisa da soja não só deles, mas também a do Brasil. E, mesmo com nossos concorrentes americanos exportando commodities, se houver previsibilidade, isso melhora o ambiente comercial para todo mundo".

Oito bilhões de dólares travados na OMC

Empresários concordam que retomar acordos abandonados pelo atual governo americano, em especial a reativação da corte de apelação da Organização Mundial do Comércio (OMC), e garantir apoio ao Brasil no ingresso à OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que foi prometido mas não cumprido por Donald Trump, estão entre os principais objetivos do setor produtivo daqui diante com vistas a elevar as exportações brasileiras.

"Reduzir essas barrerias, avançar nos acordos e ter apoio dos Estados Unidos e demais membros para ingresso de vez na OCDE. E precisamos do engajamento deles para destravar a corte de apelação da OMC. O Brasil tem litígios ali paralisados que totalizam quase 8 bilhões de dólares em produtos que vão de aeronaves à carne de frango, que poderiam ingressar em mercados consumidores", disse Carlos Abijaodi, diretor de desenvolvimento industrial da Confederação Nacional da Indústria (CNI).

Alguns setores acham que a vitória de Biden vai significar o fim de barreiras criadas na briga de Trump com a China, como no caso da siderurgia. "A indústria brasileira espera o abrandamento e a retirada dessas restrições de exportações de produtos brasileiros no mercado americano. Aço e alumínio já tiveram sobretaxa, acreditamos que isso se deu em função dos subsídios industriais que a China coloca na fabricação desses dois produtos. O Brasil entende que, salvaguardada a segurança nacional, não se justifica essa barreira com relação ao nosso país. O comércio do Brasil com os Estados Unidos nesses dois setores é complementar", destacou o representante da CNI.

Pode ajudar e prejudicar

Em geral a expectativa de analistas é de que Biden distensiona o ambiente das negociações perturbado nos últimos anos pelo temperamento impulsivo de Trump, ancorado num discurso nacionalista. Mas não dá para esperar que isso resolva a pauta de exportações muito menos os gargalos produtivos do Brasil. "De 80% a 90% dos problemas brasileiros são, para usar uma linguagem internacional, made in Brazil. Agora, alguma coisa o novo presidente americano vai afetar por aqui. Sou favorável a algumas delas, por exemplo, a pressão maior para colocar o Brasil nas exigências internacionais ambientais, condenando desmatamentos e incêndios, o que pode ajudar a reduzir resistência interna", disse Roberto Macedo, doutor em Economia por Havard e professor da USP.

"Mas Biden também pode prejudicar. Ele é favorável a um acordo com a China e pode dar incentivo à produção de soja para venda do produto americano e isso pode afetar muito o Brasil. Então vamos ver o que ele fará, como ele colocará as manguinhas de fora. De todo jeito ele é muito melhor que o Trump, que é meio ensandecido", afirmou Macedo.

A melhor saída, diz Antonio Celso Alves Pereira, analista de comércio internacional e professor de Direito Internacional da Universidade Estadual do Rio, é o Brasil não ficar refém de uma postura ideológica, até porque a situação de crise por aqui não permite tal luxo. "Estamos enfrentando sérios problemas sociais e econômicos, com 14 milhões de desempregados, déficit fiscal assombroso, que impede investimento e crescimento da economia. O Brasil precisa recuperar sua capacidade industrial, sua política de vendas externas porque hoje dependemos basicamente de commodities. Para isso o Brasil não pode manter uma política externa ideológica, precisamos de pragmatismo. Reformas internas para o ingresso na OCDE e manter com China e Estados Unidos uma parceria que realmente atenda aos interesses nacionais", disse o professor.

Além disso, frisam os analistas, muitas negociações são históricas e perpassam governos. "Sobre manufaturas, acho que pode haver até um benefício para produtores nacionais porque Estados Unidos e Brasil são parceiros há muito tempo e não há porque uma questão pessoal do presidente brasileiro interferir a ponto de os dois países deixarem de fazer negócios", concluiu Michel Alaby, consultor de mercado internacional.