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Venezuelanos driblam a quarentena vendendo produtos e serviços pelas redes sociais

07/04/2021 05h08

Há três semanas os venezuelanos estão em quarentena radical, imposta pelo governo de Nicolás maduro, e a doença não para de avançar. Só nas últimas horas foram registrados 1.526 novos casos. Durante os primeiros dias de abril foram registrados mais de sete mil casos no país, os piores índices desde a chegada doença por aqui, em março de 2020.

Por Elianah Jorge, correspondente da RFI Brasil na Venezuela

Sem poder ir aos lugares de trabalho, parte da população vem recorrendo à criatividade e à informalidade para conseguir o dinheiro que, na maioria das vezes, é destinado à alimentação.

De acordo com a Encovi, entidade que mede as condições de vida no país, a informalidade passou de 31% a 45% nos últimos cinco anos. Não há dados recentes e esse número pode ser ainda maior, alavancado pelas semanas de quarentena radical.

Impressiona a oferta de serviço pelas redes sociais. O mais comum é a venda de comida pronta e de cursos online, mas a disponibilidade avança para a saúde e até aos trabalhos sexuais.

Abundam anúncios de remédios e de tratamentos contra a Covid-19. Médicos e enfermeiras estão sendo bastante requisitados neste momento crítico da doença na Venezuela. Pelas redes sociais, estss profissionais divulgam serviços e assim aumentam a renda mensal.

O médico Samuel Ricardo trabalha em um hospital público de Caracas, onde ganha cerca de US$ 15 por mês. Nas horas vagas oferece por US$ 200 um kit de serviço domiciliar contra a Covid. O pacote conta com oxímetro, termômetro, monitoramento e exames laboratoriais. O serviço vale pelo período de 14 a 28 dias, com algumas condições. Por exemplo, o teste de PCR, que custa US$ 60, não está incluído.  

As enfermeiras particulares cobram entre US$ 30 e US$ 80 por dia de trabalho, valor superior ao que ganham no plantão em hospitais e clínicas.

Se levarmos em conta que o salário mínimo vale 1.800.000 bolívares, menos que um dólar, esSes valores são caros. No entanto são mais econômicos que os US$1.500 cobrados por um dia de internação hospitalar.

A revenda de cilindros de oxigênio é outra frente de negócios.  A Venezuela, que doou oxigênio aos estados brasileiros Amazonas e Roraima, possui o gás, mas não os botijões - que estão escassos no país.  

A administradora Gladys trabalha em um hospital público onde faltam materiais de higiene e a indumentária de proteção aos profissionais. Por medo de contágio, ela não tem ido trabalhar. Para conseguir dinheiro, desde o ano passado ela anuncia artigos pessoais em sites dedicados à venda online. Já se desfez de DVDs, panela de pressão, cadeiras e roupas. "Afinal tenho que comer e tudo está muito caro", diz.

Inflação de quatro dígitos

O Observatório Venezuelano de Finanças divulgou que o Índice de Preços ao Consumidor (IPC) em fevereiro deste ano teve uma alta de 50,9%. Segundo o Banco Central da Venezuela o país fechou 2020 com mais de 3.000% de inflação.

A economista e professora universitária Zugem Chamas explica que a informalidade aumentou com a pandemia, mas "já era algo normal na vida dos venezuelanos, afinal aqui não existe classe média. Através de trabalhos extras, a população tenta driblar a alta inflação e agora, as quarentenas radicais".

Além disso, "as empresas privadas estão enforcadas. Muitas foram fechadas", explica a economista.

A falta de combustível é outro fator que fragiliza os trabalhadores. O interior do país sofre com a escassez de gasolina e de diesel. Sem conseguir abastecer, produtores rurais estão sem trabalho e usam o tempo e o pouco de dinheiro que têm para investir na informalidade.

Vacinas à venda clandestinamente

Há também os que recorrem à ilegalidade. Alguns vendem remédios, de origem questionável, com a promessa de acabar com a Covid-19.

Outros aproveitam a pressão popular - que pede a massificação da vacinação na Venezuela - e oferecem supostas doses das vacinas russa Sputnik V e da chinesa Sinopharm, embora elas estejam em posse do governo de Nicolás Maduro e a venda seja considerada crime.

A informalidade também debilita os cofres públicos, atrapalhando a retenção de impostos. Através da internet, o SENIAT (Serviço Nacional Integrado de Alfândega e Administração Tributária, o equivalente à Receita Federal no Brasil) incentiva o contribuinte informando "que neste momento difícil que o mundo vive, seus impostos são transformados em saúde".

Mesmo assim, Nicolás Maduro anunciou na noite desta terça-feira (06) que micro e pequenas empresas criadas neste ano terão alguns benefícios, como não precisar pagar impostos

Entre os maiores empregadores do país, está o Estado. Mas no filão dos trabalhadores informais estão centenas de funcionários públicos. Com o salário pago pelo governo não dá sequer para a comida da semana.

Quando J. P. não está trabalhando no Ministério da Educação, onde recebe cerca de US$ 4 por mês, ele usa a velha moto para fazer delivery por toda Caracas. Assim ganha cerca de US$ 15 por semana - graças também às gorjetas. O dinheiro vai para a gasolina subsidiada, comprada após passar horas na fila, e para a alimentação da família.

Informalidade e criatividade 

Abundam os que recorrem a atividades inovadoras. "Por US$ 5, o estudante pode ter o trabalho do colégio feito por um universitário qualificado", diz com o anúncio na internet.

O sexo ganhou status de mercadoria - com as ofertas em alta e os preços em baixa. A rede social de paqueras Tinder virou uma grande vitrine de mulheres e homens em busca de clientes. Lá são oferecidos desde fotos sensuais a trabalhos sexuais. Os preços variam muito, mas todos são cobrados em moeda estrangeira.

"Descobrimos que sites internacionais pagam entre US$ 10  e US$ 30 por fotos sensuais dos pés da minha namorada, que são muito bonitos. Assim conseguimos nos manter com cerca de US$ 80 por mês obtidos através da venda das fotos", conta o estudante J.S., de 20 anos.

SaulEVG é o codinome usado por um jovem engenheiro petroleiro quando "farmea". Na gíria local o "farmear" significa dedicar-se aos jogos online em troca de criptomoedas que logo são vendidas e transformadas em dólares. "Estou sempre conectado e, dependendo do cliente (que compra os pontos ganhos no videojogo), fico uma média de 10 horas por dia jogando. O "farmeo" significa 80% dos meus rendimentos mensais".

Entre um jogo e outro SaulEVG encontra tempo para comprar e vender dólares no mercado paralelo. Com essa atividade ele garante os outros 20% dos ganhos do mês.

Assim, os venezuelanos vão "matando tigre", expressão do jargão local que significa fazer bico, para conseguir fechar as contas do mês e seguir em frente em um cenário turvo e bastante complexo.