Topo

STF deve liberar a Copa América, mas exigirá medidas sanitárias

10/06/2021 06h22

Relator dá prazo para que governos apresentem plano de contenção do vírus. Presidente Bolsonaro admite que está isolado mundialmente e insiste em questionar número de mortes por Covid-19 no Brasil.

Raquel Miúra, correspondente da RFI em Brasília

Como tantas crises, a realização da Copa América no Brasil foi parar no Supremo Tribunal Federal, que nesta quinta-feira (10) deve dar aval ao torneio no país. Os dois relatores, considerados bem críticos do governo na pandemia, já colocaram o voto no sistema eletrônico da corte e disseram que não há como o STF impedir o evento. Isso significaria invadir o espaço de outro poder, ainda mais se existe anuência dos governadores dos estados onde vão ocorrer as partidas. Ambos, no entanto, alertaram para importância de ações de saúde pública.

"Os elementos que instruem o processo também relevam as informações sobre os riscos de realização do evento desportivo questionado sem a adoção de medidas sanitárias complexas, rigorosas e eficazes para prevenir e diminuir o perigo objetivo de aumento dos terríveis números de infectados e mortos que a pandemia tem alcançado no País", frisou a ministra Cármen Lúcia, relatora de dois processos sobre a Copa América.

A magistrada disse que a falta de ações claras para impedir a disseminação do vírus durante a disputa pode ensejar responsabilidade dos gestores. Ricardo Lewandowski, que relata ação semelhante, exigiu, em 24 horas, a apresentação de um plano de medidas por parte do governo federal e dos estados do Rio, Mato Grosso, Goiás, além do Distrito Federal e dos municípios envolvidos.

"O Governo Federal tem a obrigação de tornar públicas, com a celeridade que as circunstâncias exigem, considerada, especialmente, a proximidade do início dos jogos da Copa América 2021, as providências que adotou, ou que pretende adotar, para garantir a segurança da população durante o evento e, de modo particular, a dos torcedores, jogadores, técnicos, integrantes das comitivas e profissionais de imprensa que ingressarão no País", pontuou Lewandowiski.

O advogado Rafael Carneiro, que defende o PSB num dos pedidos judiciais, disse à RFI que não se trata de tirar a autonomia do presidente, mas de fazer frente à inércia do governo: "O protagonismo judicial resulta da frequência das violações de direitos por parte do Executivo nessa pandemia e não o inverso. Não vamos culpar o remédio, mas sim a doença. Também não é possível comparar Copa América a outras competições, como a Libertadores. Na Libertadores, alguns times vêm ao território brasileiro para uma única partida em uma determinada cidade e permanecem por muito pouco tempo. Na Copa América várias seleções ficarão aqui por um bom tempo e ainda vão transitar internamente".

Demais ministros têm até a meia-noite desta quinta-feira, horário de Brasília, para votar. Marco Aurélio, num dos processos, já se manifestou seguindo a relatora Cármen Lúcia.

Testes periódicos

O Ministério da Saúde diz que haverá regras, como testagem periódica dos jogadores durante o torneio e circuito fechado para os atletas, do campo para o hotel, mas infectologistas e virologistas têm criticado o acordo da Conmebol com o país diante do caos hospitalar e do risco de uma terceira e próxima onda de casos de coronavírus.

As críticas também vêm da oposição. O deputado Alexandre Padilha (PT/SP) cita um estudo da Universidade Federal da Paraíba que, ao analisar casos de Covid-19 entre jogadores do Campeonato Brasileiro, ano passado, mostrou um risco de contaminação 13 vezes acima da população em geral.

"O risco é grande. E não se pode dizer que as medidas sanitárias são suficientes pois se algum protocolo de segurança anunciado pelo governo Bolsonaro tivesse sido cumprido no Brasil, nós não teríamos cerca de 500 mil óbitos confirmados por essa doença. Foi o país que quebrou todos os protocolos de segurança sanitária. Há uma semana, o governo federal disse que seria possível receber a Copa América porque todos os jogadores estavam ou estariam vacinados. Nem os jogadores da seleção brasileira iniciarão o torneio já vacinados com duas doses e com tempo de estarem imunizados. E a Copa América não se restringe aos jogadores. Mesmo se eles fizerem exames a cada 48 horas, como afirmou o governo, queremos saber se os dirigentes farão, se a comissão técnica fará, se os mais de 2 mil jornalistas já credenciados farão", disse à RFI o petista, ex-ministro da saúde.

Entre os governistas, o principal argumento é de que o país já realiza outros torneios e que as ações de contenção serão reforçadas. "Como cidadão e como parlamentar, acho que a Copa América pode ser realizada no país, que abriga tantas outras competições. O presidente Jair Bolsonaro fez uma declaração pública anunciando que a disputa viria para o Brasil. E a partir daí se gerou toda uma polêmica. Qualquer debate público hoje está politicado e polarizado, haja vista a própria situação da pandemia. Isso é ruim para o país. Não vejo razão para a Copa América não acontecer, seguindo a lógica de respeitar todas as normas das autoridades sanitárias", afirmou à RFI o deputado Márcio Labre (PSL/RJ).

O assunto também entrou nos debates da CPI da Covid no Senado esta semana, com a oposição reiterando as preocupações e a base aliada ao Planalto justificando o torneio no Brasil. "Tem uma grande diferença da Copa América para outras competições que continuam acontecendo aqui. Essa Copa não interfere em nada na sobrevivência dos clubes, dos patrocinadores, do pagamento de salário dos jogadores e funcionários. Mas o Campeonato Brasileiro, bem como outros em andamento, seja na série A, B ou C, são cruciais para a sobrevivência de todos os envolvidos, para que o jogador e o trabalhador do clube recebam seu salário", disse Omar Aziz (PSD/AM), durante um dos acalorados debates.

Jogadores contrariados

Os jogadores se mostraram contrários à competição no Brasil a essa altura da pandemia, mas vão jogar pois disseram em comunicado que não podem dizer não à seleção brasileira. Esta semana o presidente Jair Bolsonaro citou o que seria um documento do Tribunal de Contas da União para dizer que boa parte das mortes por Covid-19 teve outra motivação. Porém se trata de um trabalho de um servidor do TCU, amigo dos filhos do presidente, que acabou afastado o cargo, já que publicou o artigo sem respaldo da corte de contas.

Mesmo após toda polêmica e desmentido, Bolsonaro ontem no fim do dia voltou a bater nessa tecla, reconhecendo que está isolado mundialmente:

"Talvez eu seja o único chefe de Estado do mundo que fala isso. Será o único certo, capitão? Para acertar na megassena, alguns acertam sozinhos, acontece. Se nós retirarmos as possíveis fraudes, teremos 2020 com menor número de mortes por milhão de habitantes por causa da Covid. E aí vem o importante: que milagre é esse no Brasil? O tratamento precoce. Eu tomei hidroxicloroquina. Outros tomaram ivermectina. Outros em estado mais grave, alguns poucos estão tomando, porque é difícil encontrar no Brasil, a proxalutamida. E eu pergunto: a vacina tem comprovação científica ou está em estado experimental ainda? É experimental! Nunca vi ninguém morrer por tomar hidroxicloroquina em especial na região amazônica para curar de malária."

A CPI convocou o servidor afastado do TCU a dar explicações e vai analisar um pedido de quebra de sigilo dele, para ver se, antes de postar o documento sobre as mortes por Covid, o funcionário manteve contato com pessoas próximas ao presidente.

"O presidente questiona tanto os números, porque ele não vai visitar um hospital para ver de perto a situação os pacientes, da lotação por conta da pandemia. Por que o senhor não orienta o presidente a visitar um hospital?", perguntou na CPI a senadora Eliziane Gama (Cidadania/MA) ao ministro da Saúde, Marcelo Queiroga.