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Líbia: 10 anos após morte de Kadafi, país é palco de divisões políticas e sofre com instabilidade

20/10/2021 09h56

Em 20 de outubro de 2011, o ditador Muammar Kadafi era executado em seu reduto em Sirte, no norte da Líbia, em circunstâncias jamais esclarecidas até hoje. Dez anos após sua morte, a Líbia sofre para realizar uma transição à democracia, em um cenário de divergências entre milícias rivais que ameaçam as eleições presidenciais previstas para 24 de dezembro.

Uma década inteira de violência impediu toda a perspectiva de uma saída da crise na Líbia. Mesmo se no último mês de março, sob a mediação da ONU, o país se dotou de um governo encarregado de organizar as eleições do fim do ano, a economia continua à mercê de divisões políticas e grupos armados. 

"O cessar-fogo estabelecido em outubro de 2020 ainda está em vigor e o governo de unidade nacional se afirma como único governo líbio", explica à AFP o pesquisador Hamish Kinnear, do Instituto Verisk Maplecroft. "Mas a estabilidade é cada vez mais precária. Os próximos seis meses nos dirão se o período de calma que se seguiu ao cessar-fogo foi apenas uma oportunidade para que as facções armadas curassem as feridas, ou se representou progressos reais para uma solução política", acrescenta. 

Para o professor universitário Mahmud Khalfallah, a eleição "não bastará, por si só, para apresentar uma solução definitiva". "Ao país falta experiência, e o caminho para a mudança é longo", disse o analista, que enumerou as condições para pacificar a Líbia: "Fim das interferências, maturidade dos eleitores no momento de escolher seus representantes longe de qualquer tribalismo ou regionalismo, aceitação dos resultados por todas as partes".

As divisões continuam provocando estragos. Uma prova disso é a recente polêmica a respeito da promulgação de uma lei sobre a eleição presidencial, feita sob medida para permitir que o homem forte do leste do país, o marechal Khalifa Haftar, seja candidato. Ratificado pelo Parlamento com sede em Tobruk, no leste, o texto foi rejeitado pelo Alto Conselho de Estado, equivalente ao Senado, que fica em Trípoli, no oeste. O Parlamento também adiou por um mês as legislativas que deveriam acontecer no mesmo dia.

Haftar provoca uma grande animosidade no oeste do país desde que tentou, sem sucesso, conquistar militarmente a capital do país entre abril de 2019 e junho de 2020. Seu retrato, marcado com uma cruz vermelha, cobre as fachadas de diversos edifícios oficiais.  

"Caso as eleições aconteçam de acordo com a base descrita pela Câmara de Representantes, sem um apoio mais amplo das forças políticas do oeste, isto poderia provocar uma nova divisão da Líbia em dois governo rivais", adverte Kinnear. "O risco aumentaria se Khalifa Haftar conquistasse a presidência, porque é uma figura tóxica para as facções armadas que defenderam Trípoli durante sua ofensiva frustrada", reitera.

Para a comunidade internacional, a prioridade é a organização das eleições, apesar dos obstáculos no processo político. "Somos conscientes de que aconteceram irregularidades, inclusive casos de corrupção, mas continuamos acreditando que a solução está nas eleições", afirmou um diplomata europeu em Trípoli.

Apoiadores de Kadhafi voltam à cena política 

Com a aproximação das eleições, os simpatizantes do ex-ditador multiplicam suas aparições públicas. Nesta terça-feira (19), às vésperas do aniversário de dez anos de sua morte, apoiadores do antigo regime denunciaram em um comunicado "crimes de guerra cometidos pela Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte]". 

De fato, a polêmica intervenção internacional contribuiu para a queda de Kadafi, arrastado pelo vendaval da Primavera Árabe em 2011, após 42 anos de reinado autoritário. Mas, longe de responder às aspirações dos manifestantes, a operação também afundou o país do norte da África em uma espiral de violência e divisões internas, alimentadas pelas interferências estrangeiras. 

O filho do ex-dirigente líbio, Saïf al-Islam, protagonizou recentemente uma aparição à imprensa internacional. Ao jornal americano New York Times, ele declarou em agosto que está refletindo sobre uma carreira política na Líbia, embora não tenha se pronunciado sobre a possibilidade de se candidatar às eleições de dezembro. 

O atual governo de transição já apresenta diversos ex-ministros e ex-militares de Kadafi. No entanto, especialistas divergem sobre o peso dos apoiadores do antigo regime. Para Abou al-Kassem Kzeit, membro do Alto Conselho de Estado, caso Saïf al-Islam se candidate, ele pode atrair o eleitorado simpatizante, calculado atualmente em 50% da população líbia. 

Já para o pesquisador Jalel Harchaoui, os apoiadores de Kadafi têm importância no cenário político, mas atuam "de maneira dispersa". "A ideia de um bloco 'kadafista', sólido e harmonioso, hoje, não existe", salienta. 

Economia refém do caos político 

As tensões políticas e divisão do país entre duas autoridades - leste e oeste - desde 2014 também impedem que a economia avance. Atualmente, a Líbia dispõe de dois bancos centrais e de duas companhias nacionais de petróleo concorrentes, contribuindo para um sistema instável que fez despencar o valor da moeda nacional. 

Além disso, as três guerras civis de que o país foi palco desde 2011 afetaram as infraestruturas já obsoletas. As instalações petroleiras, frequentemente bloqueadas pelos insurgentes para pressionar adversários, são fortemente afetadas e a produção nacional nunca conseguiu voltar ao mesmo nível de 2011.

As divisões entre leste e oeste, apesar do governo "de união", atrasam questões a serem urgentemente resolvidas, como o projeto orçamentário que a Líbia não tem desde 2014. 

Essa economia predatória não poupa os seres humanos. Beneficiando-se do caos, grupos armados aproveitam para lucrar, explorando migrantes e refugiados que tentam atravessar o país para chegar à Europa. 

(RFI com agências)