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Franceses "acordam" para maus-tratos a idosos, após escândalo em casa de repouso de alto padrão

04/02/2022 17h40

As ações de dois grandes grupos franceses do setor de casas de repouso de alto padrão para idosos - Korian e Orpea - despencaram na Bolsa de Valores de Paris nesta sexta-feira (4), após o anúncio nas redes sociais que um programa de TV irá divulgar, nas próximas semanas, novas denúncias sobre irregularidades no atendimento dos residentes.

Nos últimos dias, as ações do grupo Orpea, líder mundial de lares de luxo para idosos, perderam 60% de seu valor na Bolsa de Paris, desde o lançamento do livro Les fossoyeurs (Os coveiros, em português), escrito pelo jornalista Victor Castanet. Durante três anos, Castanet recolheu mais de 250 depoimentos de cuidadores, ex-funcionários e familiares de idosos que foram vítimas de maus-tratos em um estabelecimento da rede localizado em Neuilly-sur-Seine (Résidence Les Bords de Seine), um reduto de milionários ao lado de Paris.

Em seu livro, Castanet descreve uma rotina de racionamento de produtos de saúde, higiene e alimentação para os residentes, em um lar para idosos onde o quarto mais barato custa € 6.500 por mês, cerca de R$ 40 mil. Dependendo dos serviços que a família contrata, a conta pode subir para € 12 mil, por volta de R$ 73 mil mensais.

O autor descreve um cotidiano de maus-tratos, com racionamento de fraldas - no máximo três ao dia, mesmo quando o pensionista apresentava algum distúrbio intestinal. Refeições servidas sem a menor consideração pelo residente, com a comida salgada e a sobremesa misturadas numa papa, por falta de pessoal e de tempo para alimentar os idodos corretamente. Sob o pretexto que alguns sofrem de Alzheimer avançado, por exemplo, "e já não percebem mais nada", os idosos são submetidos a um tratamento indigno. 

Em entrevista à RFI, Castanet fez questão de sublinhar que os cuidadores são vítimas colaterais de um sistema de controle de despesas rígido estabelecido pela direção-geral do grupo Orpea, a fim de garantir a margem de lucro do negócio.

Investigações

Depois que o escândalo veio à tona, descobriu-se que a Justiça recebeu pelo menos uma queixa por homicídio involuntário nesse estabelecimento em questão, após a morte de um idoso em 2020.

Familiares de uma escritora que faleceu em 2018, depois de passar menos de dois meses e meio nessa unidade, abriram um processo por negligência contra a casa de repouso. Ela morreu aos 89 anos de infecção generalizada, mas que foi contraída por causa de uma escara, uma ferida aberta no corpo supostamente malcuidada. No pouco tempo em que passou no local, a romancista perdeu 20 kg, relataram os parentes. 

A direção do grupo Orpea nega formalmente todas as acusações de suposto racionamento, principalmente de fraldas. A rede publicou um comunicado dizendo que as alegações são "falsas, ultrajantes e prejudiciais à imagem da empresa". O grupo considerou o livro sensacionalista e escrito com um "desejo manifesto de prejudicar". A direção "contratou advogados para tomar as medidas jurídicas necessárias" e disse que as denúncias são feitas por ex-funcionários vingativos, que foram embora do estabelecimento guardando "rancor". 

No último domingo, o Conselho de Administração do grupo na França demitiu o diretor-geral Yves Le Masne, e nomeou um sucessor, Philippe Charrier, que foi convocado pela ministra para a Autonomia dos Idosos, Brigitte Bourguignon. O novo executivo já foi ouvido esta semana por deputados na Assembleia Nacional. Os franceses descobriram chocados que o ex-diretor afastado, sabendo que o livro seria publicado, vendeu as ações que detinha em sua carteira de investimentos para não perder dinheiro. 

O escândalo envolvendo o grupo Orpea tomou uma dimensão nacional. O aspecto desumano do caso provoca emoção e revolta entre os franceses e políticos.

Nos levantamentos realizados depois das denúncias, ficou claro que que as agências regionais (ARS) do Ministério da Saúde que deveriam vistoriar as casas de repouso com uma certa frequência não têm funcionários suficientes para cumprir com esta obrigação legal. Entre 2017 e 2019, antes da pandemia, os registros apontam de três a 50 controles anuais, de acordo com a região.

A França tem 7.500 casas de repouso em todo o país. A maioria, três quartos delas, são mantidas pelo Estado ou por associações. A rede Orpea, líder mundial do setor, faz parte de 24% de residências para sêniores do setor privado no país, com fins lucrativos, e distribuiu € 58 milhões de dividendos aos seus acionistas em 2020. 

O Ministério da Saúde foi o primeiro a reagir às denúncias e determinou uma inspeção na agência da região parisiense para verificar o registro de visitas a essa residência de idosos. O governo abriu duas investigações administrativas, uma delas solicitada ao Tribunal de Contas para checar a situação financeira do grupo Orpea. 

Envelhecer em casa

As 7.500 casas de repouso existentes na França têm capacidade para acolher 600 mil idosos. A metade dos residentes, cerca de 350 mil pessoas, são idosos dependentes, a maioria portadores de demências ou Mal de Alzheimer. Mas outros 360 mil idosos com mais de 85 anos, de acordo com estimativas de especialistas da área, vivem em casa.

Existem serviços municipais de assistência ao idoso no domícilio, como a distribuição de refeições prontas e subsídios para a contratação de "auxiliares de vida", cuidadores que podem ajudar no banho, nas compras e em outras tarefas necessárias que a pessoa já não consegue fazer. Mas há um consenso que para os próximos anos, com o envelhecimento da população e o aumento da longevidade, será necessário que o Estado invista mais, principalmente para financiar o que os especialistas chamam de extrema dependência. 

A tendência de colocar o idoso em casas de repouco, que começou a partir dos anos 1960 na França, hoje está mudando. Faltam vagas, o custo é elevado e muitos idodos querem envelhecer em casa. Para os especialistas, cabe ao Estado e aos municípios investir na capacitação de cuidadores e na infraestrutura de apoio para que isso se torne possível.