O aquecimento global é reversível? Essa e outras perguntas para uma renomada especialista

O evento ambiental mais esperado do ano, a 28ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP28), se inicia dentro de duas semanas, em Dubai, para debater como os países podem agir para enfrentar o aquecimento do planeta. As decisões são baseadas nas conclusões dos cientistas do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas), que reúne especialistas do mundo todo em diversos aspectos do problema: desde as causas até o que precisa ser feito para evitar que aconteçam os piores cenários antecipados pela ciência.

O órgão já publicou seis robustos relatórios sobre os avanços das pesquisas nesta área. A cientista brasileira Thelma Krug, ex-vice-presidente do painel e por mais de 15 anos representante do Brasil nas negociações nas COPs, é uma das maiores especialistas do Brasil nestas questões. Krug tem doutorado em estatísticas espaciais pela University of Sheffield, na Inglaterra, e se especializou em observação da Terra no Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe). Ela respondeu às perguntas da RFI.

RFI Brasil: No relatório revelado em 2021, o IPCC indicou que se as emissões globais de gases de efeito estufa fossem zeradas - o que é praticamente impossível -, o processo de aquecimento do planeta cessaria. Mas isso não significa dizer que aquecimento global seja reversível. Por quê?

Essa é uma questão importante para gente ver. Eu gostaria de singularizar mais a parte do aquecimento global provocado pela influência humana. A gente faz essa diferenciação porque a gente tem uma variabilidade natural do clima, agora associada àquela variabilidade que já trazia vários eventos extremos como altas temperaturas, ciclones tropicais, inundações. Essas coisas não são novas. O que a gente está vendo agora é que, agregada à variabilidade natural, a gente tem uma componente humana que já levou a um aumento do aquecimento global. Pelo último relatório do IPCC, era de 1,1°C acima dos níveis pré-industriais, mas esse número já deve estar mais alto.

Ou seja, com esse aquecimento, a gente já teve uma grande modificação no sistema climático, na atmosfera. Com grandes emissões de gases de efeito estufa de natureza humana, nós estamos falando do oceano que já se aqueceu na camada superficial até 700 metros. Isso já está constatado. E você tem a criosfera também sendo altamente impactada, com o derretimento das geleiras, a perda de massa de gelo no Ártico, e finalmente na biosfera terrestre. Ou seja, você já causou muitas mudanças por conta desse aquecimento.

Indo direto para a sua pergunta, eu diria que se a gente entender um pouquinho dessa dinâmica e de como é que esses processos funcionam, não. A gente sabe que isso não seria factível, mesmo se nós eliminássemos todas as emissões de gases de efeito estufa amanhã. O oceano, por exemplo, não vai parar de se aquecer, porque a dinâmica dos oceanos é um processo muito lento. Ele é extremamente volumoso, enorme. Esse processo leva um tempo; ele não para.

Com esse aquecimento e também com a questão do derretimento das geleiras, você está vendo que a elevação do nível do mar vai continuar por centenas, milhares de anos. Ou seja, não, não se reverte. E o que preocupa é que a gente não está vendo nada que nos leve a crer que nós estamos numa trajetória de querer voltar para um patamar anterior.

A redução das emissões é o único jeito de o aquecimento parar? Como o IPCC encara a separação do que é o ciclo natural do impacto provocado pelas emissões geradas pelo ser humano?

Existe assim, uma relação que você vê como muito direta entre as emissões de gases de efeito estufa, provocados pelo homem na maior parte das vezes, o aumento da concentração de gases de efeito estufa na atmosfera e a relação desse aumento com a elevação da temperatura. A gente vê quase que uma relação direta dessas coisas: emissão, concentração, temperatura. Então, não tem um jeito de a gente reduzir a contribuição humana para o aquecimento global se a gente não tiver uma reversão muito significativa das emissões de gases de efeito estufa e, particularmente, das emissões de CO2, que é o gás de efeito estufa de natureza humana, antrópica, mais abundante. Ele é um gás que permanece na atmosfera por centenas, milhares de anos.

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O IPCC é bem claro nisso: a não ser que a gente tenha ambiciosas, profundas e sustentadas reduções de emissões de gases de efeito estufa, a gente não vai conseguir reduzir a temperatura e atingir aquilo que preconiza o Acordo de Paris, que seria manter o aumento da temperatura média global bem abaixo de 2°C e perseguir o máximo de 1,5°C.

Qual é o grau de certeza das conclusões do IPCC? Os avanços científicos podem levar muitas pessoas a acharem que os cientistas do IPCC também podem voltar atrás daqui a alguns anos.

O papel do IPCC é fazer uma avaliação de toda a literatura do mundo na temática de mudança do clima, em todos os temas. Quando você pega essas milhares de publicações de todo o mundo, são basicamente dois elementos: a evidência que você tem nessas publicações e a concordância entre elas. A gente vê, ao longo do tempo e a cada relatório de avaliação do IPCC, que sai a cada cinco anos, que você vai aumentando o grau de certeza. A gente chama de uma linguagem de calibração: a probabilidade de que aquele evento ou aquela conclusão vá ocorrer, ou já ocorreu, vai aumentando.

Outro dia eu estava participando de uma webcast com alunos de mestrado e um dos alunos falou: "eu não ouso desafiar resultados de IPCC porque tudo que a gente viu que o painel já vinha falando há décadas, hoje a gente vê que está acontecendo". E não é de hoje que o IPCC vem falando. A ciência da mudança do clima data de muitas dezenas de anos atrás, quando já se via que esse aumento da concentração do CO2, do dióxido de carbono na atmosfera, teria um impacto. A certeza vai se consolidando, você vai tendo mais evidências.

Um dos pontos onde a gente conseguiu sair da linguagem de calibração e passou para ser um fato é a questão da influência humana no aquecimento do sistema climático. E não foi fácil. Quando a gente começou, lá em 1988, 1989, a gente sabia que alguma coisa anômala estava acontecendo. E de uma maneira mais profunda, é isso que preocupa os cientistas: a velocidade com que a mudança, ou seja, o aquecimento, vem acontecendo desde 1950, 1960 e 1970. A partir daí, você está tendo uma mudança na taxa de aquecimento que é assustadora. Ela é assustadora.

Sobre as fontes de emissões, temos os combustíveis fósseis usados na energia, nos transportes, que são os maiores responsáveis pelo efeito estufa. Mas também temos a agricultura, com 23%, e é um aspecto que nos atinge diretamente enquanto consumidores que somos. O IPCC foi claro tanto nos estudos sobre o uso da terra quanto nos de adaptação, mostrando que o impacto ambiental é menor se as pessoas consumirem menos carne vermelha. O painel não sugere que as pessoas virem vegetarianas, mas indica que a carne vermelha tem um impacto pior. O que a torna mais prejudicial que os outros tipos de carne?

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Foi interessante mencionar que o IPCC não é prescritivo. Se as pessoas quiserem assimilar aquela ciência, elas se sintam à vontade, vamos assim dizer.

Esses 23% o IPCC associa não somente à agricultura, mas também a floresta e outro uso da terra. Quando a gente fala de floresta e outros usos da terra, a gente está incorporando nesse valor também a questão do desmatamento, que deve contribuir por volta de dez, 11% das emissões totais. A agricultura não tem muito associada a ela emissões de dióxido de carbono, mas ela tem emissões de metano, outro gás de efeito estufa que tem um poder de aquecimento até maior do que o CO2, mas que tem um tempo de vida muito curto, relativo ao CO2. O metano (CH4) tem um tempo de vida, de permanência na atmosfera, de 12 ou 13 anos.

Na agricultura, o maior contribuinte para as emissões de metano seria a fermentação entérica do gado. No caso do Brasil e outros países em desenvolvimento, principalmente, o gado, não é confinado. Você não tem tanta liberdade de mudar a alimentação que esse gado vai ter no Brasil. A Embrapa já está fazendo muitos estudos para poder mudar a forragem, de forma que você tivesse um tipo que não tivesse propensão a tantas emissões de metano, através do seu arroto e gases. Mas isso custa dinheiro. Não é uma coisa simples de fazer.

A outra forma é o manejo dos dejetos animais, que também são emissores de metano. E vale ressaltar que o pessoal fala da questão da carne, mas não é só carne: é o leite também. As vaquinhas também arrotam.

Qual a sua opinião sobre a forma como as conclusões do IPCC são comunicadas, seja pelo próprio painel, pela ONU ou pela imprensa? Tratar um assunto tão grave de um ponto de vista menos negativo, menos apocalíptico, poderia ajudar a evitar que as pessoas não tenham a sensação de que, de que qualquer jeito, a temperatura vai continuar aumentando?

Muitas pessoas, quando elas veem os relatórios do IPCC, elas acham que não está dando uma ênfase tão profunda quanto imaginavam que ele deveria dar, indo para essa ideia mais apocalíptica. O IPCC tende a não ser catastrófico. A gente tenta dizer que a gente está numa situação bastante complicada, mas nada que não possa ainda ser limitado, a um nível que minimize os riscos de impactos profundos, tanto no sistema climático, quanto no sistema humano. No sistema humano você está vendo um monte de mortes por conta de altas temperaturas. Nem aqui no Brasil, em que estamos acostumados com altas temperaturas, você tinha uma sensação de temperatura por volta de 50°C, como temos agora.

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Mas ao mesmo tempo em que você está querendo reduzir suas emissões de gases de efeito estufa, tudo que está acontecendo leva a ser inevitável que você aumente o uso da energia, com o ar condicionado, por exemplo. Por outro lado, tem uma conclusão que eu gosto no relatório de mitigação, que diz que atualmente a gente já tem opções globais de mitigação que nos levariam a reduzir, em 2030, pela metade as emissões de 2019, que foram as mais altas que nós já tivemos nos últimos 2 milhões de anos.

Agora, ao mesmo tempo em que o IPCC diz que a gente tem à disposição essas opções, ele também incorpora todas as barreiras que você pode ter, que não seriam tanto tecnológicas, mas seriam barreiras institucionais, financeiras, principalmente a questão do financiamento para os países em desenvolvimento. Quem financia a implementação dessas tecnologias, dessas opções que já estão disponíveis? É um ponto crucial: a gente vai precisar de trilhões por ano para limitar o aquecimento.

Enquanto isso, muitos preferem apostar que as soluções para todo o problema ainda está para ser inventada, com a evolução da tecnologia, o que daria carta branca para poluir à vontade.

Eu tenho temor dessa ideia de que as tecnologias vão surgir e então "deixa tudo acontecer agora mesmo, porque depois a tecnologia vai segurar as pontas lá na frente". Uma delas está tomando uma intensidade maior do que nós tivemos no passado, que é você fazer a modificação da radiação solar. Quando você tem grandes erupções vulcânicas, por conta de toda a liberação de aerossóis, de partículas, elas acabam prevenindo a entrada da radiação solar ou bloqueando parte dela, antes de chegar na Terra. A ideia é evitar que a radiação chegue e depois, no caso do aquecimento global, não consiga sair, por conta da concentração de gases de efeito estufa. O pessoal está pensando em soltar essas partículas na estratosfera e, ao fazer isso, bloquear parte dessa radiação, de uma forma humana.

O problema é que todos os modelos que estão sendo estudados do efeito dessa modificação da radiação solar levam a que você tenha impactos e riscos diferenciados para diferentes regiões do planeta. Por exemplo, para a África, esses modelos já apontam para uma redução na precipitação, ou seja, uma modificação na precipitação que pode afetar a agricultura deles, que vai afetar a economia desses países, que já são extremamente afetados de uma forma totalmente injusta.

O pessoal está pensando da seguinte forma: o que tem mais risco? O risco da gente deixar aquelas altas temperaturas afetarem os nossos ecossistemas, ou o risco de você ter essas tecnologias que vão afetar diferentes partes do mundo? A preocupação é que você tenha uma implementação dessas tecnologias de uma maneira unilateral. Essas pesquisas ainda não estão envolvendo pesquisadores de países em desenvolvimento.

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Sob o ponto de vista dos países em desenvolvimento, nós estamos realmente olhando para a redução das emissões de gases de efeito estufa, e não buscar uma potencial solução para os impactos do aumento da temperatura. Os países em desenvolvimento têm uma aversão a qualquer tipo de alternativa que não seja aquela da gente buscar uma redução profunda das emissões de gases de efeito estufa.

Qual a sua expectativa para essa COP 28? O fato de ela acontecer em um país que é tão dependente do petróleo como os Emirados Árabes Unidos é frustrante de antemão, em termos da ambição nas conclusões que serão anunciadas em meados de dezembro?  

O processo da Conferência das Partes é um processo lento. Quando você está falando de um processo sob as Nações Unidas, você está falando em consenso dos 196 países membros da Convenção do Clima. É por isso que você tem uma dificuldade enorme. Então, eu acho que a gente vai caminhando em doses homeopáticas, como eu digo, quando na verdade a gente já deveria estar trabalhando com processos muito mais acelerados. A gente está vendo avanços na questão das tratativas de redução dos combustíveis fósseis, mas como as indústrias de óleo e gás falam, enquanto houver demanda, nós vamos continuar produzindo. Nós não vamos parar e deixar o pessoal na mão.

Mas estamos vendo, também, uma mudança na linguagem. A ciência diz que se trata de fase out das emissões por combustíveis fósseis, ou seja, eliminar. Mas a linguagem que é usada é fase down, ou seja, eu não vou eliminar, mas eu vou reduzir. Essa linguagem eu acho que é irreversível. Enquanto, em alguns pontos, mesmo dentro do IPCC, a gente tinha uma enorme dificuldade de tratar com a questão dos combustíveis fósseis, aos poucos a gente vai vendo essas doses homeopáticas entrando, mesmo que seja como fase down. Não importa, porque esse fase down em algum ponto entrará como fase out.

Você também já está vendo isso nas reduções das emissões pelo carvão. A China está fazendo uma redução significativa e indo muito para as renováveis.

Eu acho que uma questão importante que também conseguiu evoluir, principalmente na última COP, é a questão de perdas e danos. Significa haver o reconhecimento de que os países, principalmente os países insulares, as pequenas ilhas em desenvolvimento, seja aqui no Caribe, seja no Pacífico, que estão extremamente afetadas por eventos extremos, deveriam ser, de alguma forma recompensados por isso.

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