Tiago Rodrigues revisita tragédia de Eurípides e borra fronteiras da ficção para falar de justiça e teatro

Da tríade de poetas trágicos que deixaram sua marca na Antiguidade clássica - Ésquilo, Sófocles e Eurípides -, é certamente esse último o responsável por trazer o time olímpico, deuses e mitos, perigosamente mais perto do pathos humano. E é justamente em uma peça desse autor da Salamina, nascido há mais de 2.500 anos, que o diretor português Tiago Rodrigues se inspirou para dialogar com o século 21 em seu novo espetáculo, Hécube, pas Hécube, que estreou no Festival de Avignon de 2024. 

Marcia Becharaenviada especial da RFI a Avignon

Eurípides é conhecido por reformar a estrutura formal da tragédia ática tradicional, retratando personagens excluídos da sociedade grega tradicional, como mulheres fortes e escravos inteligentes, e por satirizar muitos heróis da mitologia grega.

A história trágica de uma dessas mulheres - Hécuba - antiga rainha tornada escrava com a queda de Troia -, é a protagonista do drama contemporâneo Hécuba, não Hécuba (Hécube, pas Hécube, em tradução livre), que Tiago Rodrigues decidiu encenar na famosa Carrière de Boulbon, espaço do Festival de Avignon lembrado por ter sido cenário da primeira montagem de The Mahabharata (1985), com a assinatura do saudoso Peter Brook (1925-2022).

"Com Hécuba, Eurípedes cria uma espécie de ruptura na tragédia clássica. Pela primeira vez, ele deu voz à intimidade dos personagens, pintando um retrato sensível baseado em seus sentimentos. Talvez ele tenha sido o primeiro dramaturgo a pensar e permitir uma leitura psicológica dos protagonistas. De certa forma, isso é revolucionário", diz o diretor, que ocupa, desde 2023, também a função de diretor-geral do Festival de Avignon.

Desse labirinto inspirado pelo drama da vida real, Rodrigues desenvolve sua pluma dramatúrgica para criar "Nadia", atriz encarnada com extrema sutileza e uma presença cênica imponente por Elsa Lepoivre, da Comédie Française (instituição teatral criada por Molière em 1680, a companhia de teatro mais antiga do mundo, com sede em Paris), uma artista que ensaia o papel principal de Hécuba, mas que transpõe, na magia da caixa (ou pedreira, no caso de Boulbon) cênica, seu drama para a vida real, defendendo o caso de seu filho autista maltratado nos tribunais, borrando as fronteiras entre realidade e ficção.

"Uma mulher ferida que exige justiça, Hécuba também é um símbolo político. Essa dimensão sempre me fascinou e atinge seu clímax em uma peça sobre a aceitação da vulnerabilidade pela sociedade", diz o diretor, na apresentação da peça. "Quando um artista diz Shakespeare ou Molière, ele está reescrevendo ou traduzindo Shakespeare ou Molière. É um exercício de imaginação. A vida dos artistas de teatro é repleta de experiências. Há uma porosidade entre atores e atrizes, suas vidas e suas interpretações das palavras que interpretam", acredita Rodrigues.

"Ela [a atriz e a personagem Hécuba] prega a favor de uma Convenção de Genebra avant la lettre [antes de seu tempo, segundo a expressão francesa]. Para ela, a lei e os valores da humanidade estão acima da vontade dos deuses. É esse aspecto político da relação com a lei que me interessa", considera o diretor. 

Não é a primeira vez que Rodrigues se lança nos clássicos. Mas para a mis-en-scène de Hécuba, não Hécuba, ele escolheu trazer uma leveza para a tragédia, uma leveza claramente apoiada na performance fluida dos atores da Comédie Française, com destaque também para o (bem conhecido por sua filmografia no Brasil) Denis Podalydès.

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À medida que os ensaios avançam na trama de Rodrigues, Nadia acha cada vez mais difícil distinguir sua própria tragédia da de Hécuba. No tempo estendido do teatro, quando a tríplice personagem Elsa/Nadia/Hécuba leva as questões do texto de Eurípides para a vida real, estamos também discutindo questões com a plasticidade e a força do teatro, enquanto argumento e força existencial que extrapolam o palco.

Mas também estamos colocando na arena, entre ética e estética, questões como a justiça e o poder (ou não) do pacto civilizatório que nos constitui enquanto cidadãos. 

E é talvez inspirado também por esse pacto euridipiano que o diretor Tiago Rodrigues irrompeu a cena da Carrière de Boulbon, nos arredores de Avignon, depois da estreia de Hécube, pas Hécube, no dia 30 de junho, após ser confirmada a vitória da coligação comandada por Marine Le Pen e Jodan Bardella nas eleições legislativas antecipadas da França, para convocar a coletividade presente a participar do evento La nuit d'Avignon (A noite de Avignon), uma iniciativa cidadã do festival para lutar contra "a ameaça da extrema direita" no país.

"Fiel a seus valores fundadores, e convencido que um outro projeto de sociedade progressista, popular, democrática, republicana, feminista, ecologista e antirracista é desejável, o Festival de Avignon, convocando o público a se unir à Noite de Avignon, deseja encarnar o lugar vital do debate social e político", diz o texto do evento, que acontecerá a portas abertas e gratuitamente nos dias 4 e 5 de julho no Palácio dos Papas, vitrine principal do festival, com a presença de vários artistas convidados.

Hécuba, não Hécuba fica em cartaz no Festival de Avignon 2024 até o dia 16 de julho.

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