Esquerda volta ao poder no Uruguai com Yamandú Orsi e beneficia a liderança de Lula na região

Depois de cinco anos, a esquerda da Frente Ampla volta ao poder no Uruguai, fortalecendo o Mercosul e dando ao presidente Lula um aliado estratégico na região. O candidato Yamandú Orsi venceu o segundo turno neste domingo (25), com 49,8% dos votos. Já o candidato do partido governista de centro-direita, Álvaro Delgado, teve 45,9%, segundo resultados oficiais. 

Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires

Lula e Orsi podem ter a primeira reunião em Montevidéu dentro de 10 dias. Já o atual presidente Luis Lacalle Pou, o mais popular da América do Sul, volta ao Senado, de onde deve construir a sua tentativa de retornar à Presidência dentro de cinco anos.

A opositora Frente Ampla, que governou o país por 15 anos, entre 2005 e 2020, estará de volta ao poder a partir de 1º de março. A vitória de Yamandú Orsi é também um triunfo regional para o presidente Lula, que ganha um aliado na vizinhança

A participação de 89,4% dos uruguaios mostra o engajamento da sociedade com o processo democrático. Como acontece desde dezembro de 2015, todas as eleições livres na América do Sul são ganhas pela oposição.

Esse ponto chama especialmente a atenção no Uruguai, um país em crescimento, com bons indicadores macroeconômicos e sociais e com um presidente, Luis Lacalle Pou, com a imagem positiva mais alta entre os líderes da América do Sul (52%). Num país sem reeleição, Lacalle Pou não conseguiu transferir a sua popularidade ao candidato governista.

Afilhado político de "Pepe" Mujica

Yamandú Orsi, de 57 anos, é o terceiro presidente de esquerda da história do Uruguai, depois de Tabaré Vázquez e de José Mujica, o Pepe. O eleito milita desde 1989 no Movimento de Participação Popular, criado por Pepe Mujica, amigo pessoal do presidente Lula.

Dentro da Frente Ampla, o eleito Yamandú Orsi é o que poderia haver de mais próximo do atual governo brasileiro.

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Professor de história desde 1991, Yamandú Orsi foi também dançarino de música folclórica uruguaia e comerciante durante 22 anos. Foi eleito duas vezes governador do Departamento de Canelones até março deste ano, quando renunciou para disputar a Presidência.

Yamandú Orsi se tornou o primeiro presidente do interior do país desde a recuperação da Democracia em 1985.

Quando foi governo, a Frente Ampla legalizou o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a produção e venda de maconha recreativa. Na contramão do mundo, o eleito pretende discutir uma redução da idade mínima para a aposentadoria.

Mercosul passa a ser prioridade

O que mais deve mudar com o novo governo será a política externa do Uruguai, um ponto errático durante o atual governo de Luis Lacalle Pou. "Durante os últimos anos, houve uma falta de rumo coerente do governo em matéria de política exterior", indicou à RFI a cientista política uruguaia, Micaela Gorritti, acadêmica da Universidade da República.

Em setembro de 2021, por exemplo, o Uruguai ensaiou negociações comerciais com a China por fora do Mercosul. A intenção era forçar o bloco a uma flexibilização da regra que impede acordos comerciais bilaterais, ponto que põe em xeque a União Alfandegária do bloco.

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Um ano depois, em agosto de 2022, o Uruguai assinou uma declaração da XV Conferência de Ministros da Defesa das Américas que se alinhava com a "Defesa Integrada", uma estratégia dos Estados Unidos que identifica a própria China como potencial inimiga.

Com o eleito Yamandú Orsi, o Uruguai vai continuar a insistir na necessidade de abertura do Mercosul para acordos com outros países, mas não vai avançar em negociações por fora do bloco.

"Existe uma demanda dos setores produtivos por ampliar acordos comerciais que dinamizem a economia, abrindo novos mercados. Yamandú Orsi vai considerar essa pressão, mas negociando dentro do Mercosul, tendo o bloco como plataforma de inserção Internacional", aponta Micaela Gorritti. "Orsi vai pôr ênfase no Mercosul e na liderança do Brasil", afirma.

Condenação à Venezuela

Um ponto de dúvida é quanto à veemência em questionar o governo de Nicolás Maduro na Venezuela a partir de 10 de janeiro, quando vence o atual mandato do ditador.

No passado, a Frente Ampla teve uma postura contemplativa com o regime venezuelano. O atual presidente Luis Lacalle Pou, pelo contrário, sempre foi um dos líderes mais críticos.

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"Quando você tem dificuldades diplomáticas com outro Estado, você o coloca no final ou não o considera. Hoje, meu país tem dificuldades diplomáticas com a Venezuela", disse Yamandú Orsi, neste domingo (24), após votar.

Para Micaela Gorritti, o mais provável é que Yamandú Orsi siga a postura de Lula. "Nesse ponto, também deve somar-se ao coro dos países alinhados com o Brasil. Esse assunto divide a Frente Ampla internamente e deixa Orsi numa situação incômoda. Ele não terá o protagonismo de Lacalle Pou nesse assunto. Vai-se pronunciar a favor da Democracia, mas num tom mais moderado e menos agressivo do que Lacalle Pou", acredita.

 

Sob a liderança de Lula

Nenhum outro líder internacional é mais beneficiado com a vitória de Yamandú Orsi do que o presidente Lula. Não é à toa que Lula enviou uma calorosa mensagem através das redes sociais na qual "congratulou o presidente eleito e o amigo Pepe Mujica".

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Lula escreveu que "é uma vitória da América Latina" e, confirmando a mudança de postura do Uruguai, completou que "Brasil e Uruguai seguirão trabalhando juntos no Mercosul e em outros foros pela integração regional".

Após votar, Yamandú Orsi disse que o Mercosul "precisa de uma injeção de dinamismo" e de "uma mistura de abertura e unidade. É um equilíbrio complexo. Ignorar o Mercosul é uma falta de critério", avaliou.

Do outro lado do espectro ideológico, o presidente argentino, Javier Milei, não escreveu nenhuma mensagem pessoal. Apenas reproduziu uma formal mensagem do Ministério das Relações Exteriores da Argentina na qual "ratifica o compromisso de trabalhar para fortalecer a agenda comum e o bem-estar dos dois países".

A vitória de Yamandú Orsi é um golpe na pretensão de Javier Milei de também lançar negociações comerciais por fora do Mercosul.

O Uruguai pode ser um país pequeno e sem peso comercial, mas, no Mercosul, o voto do Uruguai vale tanto quanto o do Brasil, da Argentina e do Paraguai.

O apoio do Uruguai é importante para a liderança do presidente Lula porque ninguém é ator global se não lidera a sua região.

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Por isso, nos próximos dias 5 e 6 de dezembro, quando houver a reunião de cúpula do Mercosul em Montevidéu, Lula provavelmente terá uma reunião bilateral com o presidente eleito, Yamandú Orsi.

O atual presidente uruguaio, Luis Lacalle Pou, disse que vai convidar Yamandú Orsi para participar da reunião como um passo para a transição, neste caso internacional.

Lacalle Pou estava convidado, mas não viajou ao Rio de Janeiro para participar do G20. Foi uma forma de manter distância de Lula. Agora, o Uruguai volta a estar alinhado com o Brasil de Lula.

Desafio de governabilidade

Yamandú Orsi foi eleito, mas sabe que ganhou com uma diferença de apenas 95.502 votos. Há uma metade do país que pensa de outra maneira.

Os governistas são maioria no Senado, mas não na Câmara de Deputados. Precisam de apenas dois votos para formar maioria, mas, para conseguir esses votos, vão precisar negociar, ceder e fechar acordos.

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Não se espera nenhuma mudança radical no país. A esquerda da Frente Ampla sempre foi moderada quando tinha maioria no Congresso e mais será agora.

"Nos últimos 20 anos, esse tipo de negociação para grandes acordos nacionais não foi necessário porque os governos tinham maioria parlamentar, com exceção de um período em que um legislador mudou de lado. Agora, terão de negociar e isso modera qualquer iniciativa", considera a analista Micaela Gorritti.

O presidente Luis Lacalle Pou se colocou à disposição do eleito para começar a transição.

Em outubro, Lacalle Pou foi eleito senador, cargo que teve entre 2015 e 2019, antes de chegar à Presidência. Acreditava-se que essa candidatura agora fosse apenas para atrair votos para o seu partido, mas ele deve mesmo assumir a vaga no Senado de onde provavelmente construirá a sua candidatura para dentro de cinco anos.

"Dentro de 97 dias estarei perto do povo, estarei na atividade política e estarei onde o povo acreditar ser melhor. Sou senador eleito, então é onde devo estar", disse Lacalle Pou, após votar.

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