Mulheres se alistam no Exército do Sudão para defender meninas de estupros massivos durante conflito

Desde 15 de abril de 2023, a capital do Sudão, Cartum, tornou-se o epicentro dos confrontos entre as Forças Armadas Sudanesas, lideradas pelo general Burhan, e os paramilitares das Forças de Suporte Rápido (FSR), comandados pelo general Hemedti. Originárias das milícias janjawids, responsáveis pelo genocídio em Darfur no início dos anos 2000, as FSR são acusadas de cometer inúmeras violências contra mulheres nas áreas sob seu controle.

Eliott Brachet, enviado especial da RFI ao Sudão

Na quadra de uma escola para meninas convertida em campo de treinamento em Hay El-Chati, uma centena de recrutas soldadas ficam em posição de sentido. Antes da guerra, Riham El-Hadi, de 18 anos, deveria estar se preparando para o vestibular.

Mas ela se viu acuada durante os confrontos em Cartum: "Ficamos presas em um bairro. Não podíamos sair. Mas podíamos vê-los. Os paramilitares estavam atacando e saqueando. Houve estupros. Eles entravam nas casas e levavam as meninas à força na frente dos pais. Isso aconteceu com minha vizinha. Alguns homens com turbantes chegaram. Eles estavam usando o uniforme das Forças de Apoio Rápido. Eles sequestraram a menina e a levaram para um lugar desconhecido. Depois de alguns dias, tentamos pagar um resgate para levá-la para casa, mas descobrimos que ela havia sido estuprada e morta", declarou à RFI.

"Estou defendendo meu país e as meninas que foram estupradas "

 

A maioria dessas mulheres sudanesas fugiu das áreas controladas pelas tropas do general Hemedti. Agora, servindo no exército regular, elas aprendem disciplina militar, manuseio de armas, kung fu e tiro: " Meu nome é Rana Mohammed Osman. O que me levou a entrar para o exército foi o que vi com meus próprios olhos. O que vimos não pode ser descrito. Não pode ser contado. Testemunhamos inúmeros atos de violência", diz.

"Vimos idosos sendo espancados. Meninas estupradas. Hoje, estou convencida de que estou no lugar certo. Aqui, estou defendendo meu país, estou defendendo as meninas que foram estupradas. Quero fazer parte do esforço de guerra. Espero que me mandem para o front", reitera Osman.

Embora haja pouca chance de que essas mulheres um dia sejam enviadas para o campo de batalha, saber como portar uma arma as tranquiliza. Todas concordam que nunca se sentiram tão vulneráveis.

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Estupradas e abusadas, sudanesas são as primeiras vítimas da guerra

Na esteira da guerra entre os dois exércitos do Sudão, a violência sexual contra as mulheres está aumentando. Embora ambos os lados cometam abusos, as Forças de Apoio Rápido são consideradas responsáveis pela grande maioria desses atos de violência contra as mulheres, de acordo com as conclusões de um relatório de especialistas da ONU publicado em 23 de outubro.

As tropas paramilitares lideradas pelo General Hemedti descendentes das milícias janjawids participaram do genocídio em Darfur no início dos anos 2000, durante o qual o estupro foi usado como arma de guerra. Vinte anos depois, eles reproduzem a mesma campanha de humilhação em todo o Sudão.

Em Omdurman, uma vítima concordou em testemunhar à RFI sob a condição de permanecer anônima. Nós a chamaremos de "Fátima". A mulher de 28 anos fugiu do bairro de Oumbada sob o jugo dos paramilitares. A entrevista ocorreu em uma sala de aula de uma escola convertida em um centro de recepção para famílias que fugiram dos combates.

Em 14 de janeiro de 2024, "Fátima" foi sequestrada por três soldados das Forças de Apoio Rápido. Sob o pretexto de que seu tio trabalhava na alfândega, ela foi acusada de colaborar com o exército regular. "Eles me levaram para uma casa escura. Era meia-noite e meia. Estava muito escuro, mas eu podia sentir o cheiro de sangue. Depois de me baterem, eles me arrastaram pela perna até o segundo andar, subindo as escadas. O oficial mais graduado veio até mim. Ele me disse: 'Você está colaborando com o exército. Vou estuprá-la para envergonhar o seu tio'. Eu disse que tinha acabado de me casar, que ainda era virgem. Ele disse: 'Não conheço essa palavra'. Ele me estuprou", grita a jovem. "Ele desceu novamente. O segundo soldado subiu, depois o terceiro", relatou.

"Eu me tornei a coisa dele"

A história de Fátima aconteceu com milhares de outras pessoas. De acordo com as informações recolhidas pelo correspondente da RFI, os paramilitares organizaram um comércio de escravos sexuais em todo o país. Centenas de mulheres foram vendidas em mercados em Darfur.

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"Um deles disse: 'Agora vamos matá-la'. Ele atirou para o alto. Mas o policial disse: 'Não, eu a quero. Vou levá-la comigo". Ele me disse que eu teria permissão para viver com uma condição: "Você vai para casa, pega suas coisas e, às 5 horas da manhã, sai comigo. Iremos para Nyala ou El Fasher (em Darfur)". Depois de me estuprar, eu me tornei seu objeto, e ele achava que podia fazer o que quisesse comigo. Quando cheguei em casa, não conseguia ficar de pé. Contei tudo à minha mãe e ela disse: "Você não vai com eles". Ela pediu ao vizinho que ficasse vigiando. Não havia ninguém na rua. Às 3 horas da manhã, fugimos", conta "Fátima".

Depois de cruzar a linha de fronteira, ela foi interrogada pela inteligência do exército regular, que queria informações sobre o inimigo. Ninguém se importava com sua situação. Ela relata que começou um novo inferno, o do "silêncio".

"Quando meu marido descobriu, ficou furioso e quis o divórcio. Depois de um mês, ele disse que havia recebido uma mensagem de Deus. Ele concordou em ficar comigo com a condição de que eu não dissesse nada à família dele ou a qualquer outra pessoa. No Sudão, essas são coisas que não se pode dizer, é vergonhoso. Além dos meus pais e da minha tia, ninguém sabe", lamenta.

Quatro anos após a revolução contra o regime de Omar al-Bashir, que trouxe um sopro de esperança para as mulheres, as sudanesas se tornaram as primeiras vítimas desta nova guerra.

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