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Reinaldo Azevedo

Bolsonaro: pelo direito de morrer de Covid-19 sem a interferência do Estado

O presidente Jair Bolsonaro com imagem ao fundo do patógeno que se tornou seu grande aliado moral, existencial, filosófico, intelectual e ideológico - Evaristo Sá/Reuters; Montagem
O presidente Jair Bolsonaro com imagem ao fundo do patógeno que se tornou seu grande aliado moral, existencial, filosófico, intelectual e ideológico Imagem: Evaristo Sá/Reuters; Montagem

Colunista do UOL

03/07/2020 08h27

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O presidente Jair Bolsonaro, acreditem!, vetou parte de lei aprovada pelo Congresso que impõe o uso de máscaras em todo o país durante a pandemia. A justificativa é ridícula. Prestem atenção: "A propositura legislativa, ao estabelecer que o uso de máscaras será obrigatório em demais locais fechados em que haja reunião de pessoas, incorre em possível violação de domicílio por abarcar conceito abrangente de locais não abertos ao público".

É mentira! Tal trecho está inserido num artigo que trata da obrigação de máscaras em "espaços públicos e privados acessíveis ao público". Portanto, os domicílios, obviamente, não eram abrangidos pela lei. O veto é um despropósito e tem de ser derrubado. E, claro!, todos nos perguntamos: "Mas que diabos o presidente ganha com isso? Como explicar?" Vamos ver.

Que se note: com o veto, a máscara deixa de ser obrigatória em órgãos e entidades públicos e em estabelecimentos comerciais, industriais e templos religiosos. Mais: esses estabelecimentos deixam de ser obrigados a fornecer máscaras para os funcionários. Reitero: trata-se de um veto homicida. Tem de ser derrubado, Vamos ver quantos parlamentares querem segurar alça de caixão junto com o presidente. É um despropósito.

Há cálculo político na atuação do presidente no enfrentamento da pandemia? Há, sim. Ele está sendo bem-sucedido? De saída, é preciso considerar que aquilo que, inicialmente, pretendia ser uma esperteza fria — potencialmente homicida desde sempre — se transformou numa psicopatia. Já não se trata nem mais de simples negacionismo, o que já seria suficiente para despertar a suspeita de que se está a lidar com um caso clínico.

Os números do coronavírus escalam a montanha. É pouco provável que o Brasil vá para o topo do ranking, desbancando os EUA como o país com o maior número de contaminações e mortes. Afinal, mais estúpido do que Bolsonaro no enfrentamento da doença, só mesmo Donald Trump, seu líder espiritual. Ademais, naquele país, os governadores não atuaram como um primeiro fator de contenção do vírus. O desonroso segundo lugar já é tragédia que nos basta, não é mesmo?

Mas, afinal, o que queria Bolsonaro? Sim, ele foi alertado para a crise econômica mundial que adviria da pandemia — especialmente grave no Brasil — e procurou, desde o começo, tirar o corpo fora, culpando por ela os defensores do distanciamento social, o que é uma aberração. Mas não só isso: decidiu ignorar as advertências que recebeu do Ministério da Saúde, que projetavam pelo menos 100 mil mortos. Apegou-se a vigaristas que lhe vendiam impressionismos como ciência.

Vou transcrever aqui a fala do presidente em entrevista ao Domingo Espetacular, da TV Record, no dia 22 de março -- há três meses e meio:
"Não podemos extrapolar na dose porque, com o desemprego aí acontecendo, a catástrofe será maior. Mais ainda: o número de pessoas que morreram de H1N1 no ano passado foram (sic) da ordem de 800 pessoas. A previsão é não chegar a essa quantidade de óbitos no tocante ao coronavírus. Então, tem certos números que temos de levar em conta. E essas crises, esses vírus, acontecem ao longo do tempo no mundo todo. Então, calma, tranquilidade, não levar pânico à população; não exterminar empregos, senhores governadores! Sejam responsáveis! Espero que não queiram me culpar lá na frente pela quantidade, de milhões e milhões de desempregados, na minha pessoa. Estamos fazendo a coisa certa, observando protocolos. E com tranquilidade".

Naquele 22 de março, um domingo, o país contabilizava 1.546 casos de Covid-19, com um total de 25 mortos. Fosse mais responsável, o presidente teria notado que, em São Paulo, o número de contaminados de um dia para o outro havia crescido 37,4%. Mas ele preferiu enterrar mortos ao som da ladainha de... Osmar Terra.

Muito bem! Nesta quinta, 2 de julho, as contaminações no país atingiram a marca de 1.501.353 pessoas, e os mortos já são 61.990. Não deixa de ser impressionante que Bolsonaro continue presidente.

À frente da saúde, há um general da ativa, Eduardo Pazuello, não menos negacionista do que o próprio chefe, cuja caraterística mais visível é a incompetência arrogante. Substituiu os médicos da pasta por soldados, e seu feito mais notável, até agora, foi recorrer a uma patranha para esconder os números da doença.

Vamos ultrapassar, é claro!, a marca dos 100 mil mortos (o número previsto por Bolsonaro multiplicado por 125) — até porque se abre a economia com a doença fora de controle —, e nosso glorioso presidente se entrega ao capricho de vetar o artigo da lei que trata da obrigatoriedade de máscara em ambiente fechado porque acha que isso agride a liberdade individual.

Estamos, sem dúvida, diante de um libertário. Eis aí um presidente que garante a todos o direito de morrer. Sem a interferência do Estado. Segundo o nosso espetacular pensador, a liberdade de não usar máscara é mais importante do que a vida.