Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Bolsonaro inelegível, vota Gonçalves. É pouco! Em outra esfera, virá cadeia
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O ministro Benedito Gonçalves, corregedor do TSE e relator da Aije (Ação de Investigação Judicial Eleitoral) que pode resultar na inelegibilidade de Jair Bolsonaro por oito anos, votou em favor de sua condenação por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação. Mas livrou a cara de Walter Braga Netto, vice na chapa. Alertou que o voto que distribuiu aos outros seis ministros conta com 382 páginas. Ontem, veio à luz uma, por assim dizer, "síntese" de 200.
Este escriba não conseguiu ler tudo, mas dedicou parte da madrugada ao texto — há, ainda, linha a linha, uns 30% a serem enfrentados. Percorri, no entanto, o documento no seu conjunto, em todos os seus aspectos relevantes. As transgressões aconteceram, aponta, na reunião promovida por Bolsonaro com embaixadores estrangeiros no dia 18 de julho do ano passado, no Palácio da Alvorada, quando apontou fraudes inexistentes em pleitos anteriores e afirmou que o sistema eleitoral era vulnerável.
Já andei lendo aqui e ali gente que parece estar com peninha de Bolsonaro. É pura administração de opinião e adesão à tese de que, para enfrentar Lula e o PT, toda força é necessária -- inclusive a elegibilidade de um golpista. O voto é demolidor. Vale transcrever o veredito propriamente, e farei outros destaques na sequência. Escreve Gonçalves:
"No mérito, julgo parcialmente procedente o pedido, para condenar o primeiro investigado, Jair Messias Bolsonaro, pela prática de abuso de poder político e de uso indevido de meios de comunicação nas Eleições 2022 e, em razão de sua responsabilidade direta e pessoal pela conduta ilícita praticada em benefício de sua candidatura à reeleição para o cargo de Presidente da República, declarar sua inelegibilidade por 8 (oito) anos seguintes ao pleito de 2022.
Deixo de aplicar a cassação do registro de candidatura dos investigados, exclusivamente em virtude de a chapa beneficiária das condutas abusivas não ter sido eleita, sem prejuízo de reconhecer-se os benefícios ilícitos auferidos, por ambos os investigados.
Deixo também de declarar a inelegibilidade do segundo investigado, Walter Souza Braga Neto, em razão de não ter sido demonstrada sua responsabilidade para a consecução das práticas ilícitas comprovadas nos autos. Tendo em vista o não cabimento de recurso com efeito suspensivo, determino a comunicação imediata desta decisão à Secretaria da Corregedoria-Geral Eleitoral para que, independentemente da publicação do acórdão, promova a devida anotação no histórico de Jair Messias Bolsonaro, no Cadastro Eleitoral, da hipótese de restrição a sua capacidade eleitoral passiva."
O julgamento será retomado nesta manhã com o voto do ministro Raul Araújo, também oriundo do STJ, como Gonçalves. Sem pudor, Bolsonaro praticamente lhe implorou um pedido de vista. Ainda que viesse, Araújo teria de devolvê-lo no prazo de 60 dias. E não há como Bolsonaro escapar do seu destino. Alguns de seus porta-vozes informais, com o apoio de certo colunismo, sugerem que se estaria criando, assim, um gigantesco mártir eleitoral. É mesmo? Vamos ver. Não custa lembrar que o "Mito" ainda tem de acertar as suas contas na esfera criminal. E são muitas. Adiante.
Entre as páginas 41 e 43 da "síntese", o relator expõe as acusações feitas pelo PDT e a resposta apresentada pela Defesa, destacando que o Ministério Público Eleitoral também apontou abuso de poder político e desvio de finalidade na tal reunião, além da especial gravidade da conduta.
Apontou o PDT:
a) o teor do discurso disseminou severa desordem informacional, sem qualquer contribuição para a melhoria do sistema de votação;
b) essa atuação converge com estratégia de campanha, de ataque à credibilidade das urnas eletrônicas e do TSE, para mobilizar bases eleitorais;
c) a reunião, portanto, teve nítida finalidade eleitoral, mirando influenciar o eleitorado e a opinião pública nacional e internacional;
d) o uso da estrutura pública e das prerrogativas do cargo de Presidente da República foi contaminado por desvio de finalidade em favor da candidatura da chapa investigada;
e) a transmissão pela TV Brasil e pelas redes potencializou o alcance da desinformação;
f) a estratégia de descredibilização das urnas eletrônicas e os ataques à Justiça Eleitoral contribuíram significativamente para estimular a não aceitação dos resultados eleitorais por parte da população;
g) a minuta de decreto de estado de defesa apreendida na residência de Anderson Gustavo Torres em 12/01/2023 é um exemplo dos impactos dessa estratégia sobre a normalidade e a legitimidade das eleições; e h) a minuta também indica que estava sendo gestado um golpe de estado, convergente com o discurso de 18/07/2022, no qual se insinuou que a derrota do candidato à reeleição corresponderia à prova de fraude."
Respondeu a defesa de Bolsonaro:
"a) o discurso proferido em 18/07/2022 se insere em um diálogo institucional salutar, caracterizando momento em que o Presidente da República externou opiniões, ainda que fortes, voltadas para aperfeiçoar o sistema de votação;
b) a atuação se deu na qualidade de Chefe do Estado, dentro dos limites do cargo; c) a reunião não teve finalidade eleitoral, eis que seu público-alvo foram os embaixadores e as embaixadoras presentes, que sequer possuem capacidade eleitoral ativa;
d) não houve qualquer desvio de finalidade em favor do candidato à reeleição, pois não houve pedido de votos, entrega de material de propaganda ou comparativo entre candidaturas, e os valores dispendidos para realizar o evento foram módicos;
e) a cobertura da TV Brasil é justificada por se tratar de evento realizado pelo Presidente da República e qualquer efeito do discurso foi prontamente inibido por manifestação do próprio TSE rebatendo os pontos, dentro do diálogo institucional esperado;
f) não se pode estabelecer qualquer correlação entre o discurso proferido em 18/07/2022 e fatos que ocorreram ao longo do período eleitoral e mesmo após a diplomação e a posse, especialmente porque praticado por terceiros, sem prévia ciência, anuência ou participação do primeiro investigado;
g) a minuta apreendida na residência de Anderson Torres não possui qualquer valor como prova, pois é apócrifa e a perícia descarta que o primeiro investigado tenha tocado no documento, além do que não se teve notícia de convocação do Conselho da República e do Conselho de Defesa Nacional para dar início à decretação de estado de defesa."
ABUSO DE PODER POLÍTICO
Terá, afinal de contas, acontecido o abuso de poder político? O então presidente teria usado o cargo para mobilizar a máquina pública com objetivos que acabaram sendo inequivocamente eleitorais? Às páginas 166 e 167, Gonçalves responde:
"Sempre sob a pretensa escusa de seu linguajar "simples", o então pré-candidato à reeleição, no dia 18/07/2022, transformou o púlpito presidencial em palanque: exaltou seu governo, apontou-se como vítima de um imaginário complô político, atacou Ministros do TSE, reiterou inverdades a respeito de manipulação de votos e do teor de investigação da Polícia Federal e até mesmo prometeu liberar recursos públicos para implementar propostas das Forças Armadas recusadas na Comissão de Transparência do TSE. Tudo isso foi atrelado a menções ao pleito de 2022, ao suposto 'risco' de ser forjada a eleição de um adversário, passando, assim, a mensagem de que não apenas era mais apto para o cargo, como também essencial para a sobrevida da democracia no país.
A partir das ideias concebidas em sua mente para reafirmar sua liderança política e eleitoral por meio da antagonização com a Justiça Eleitoral, Jair Messias Bolsonaro ordenou que rodassem as engrenagens da máquina pública. E elas giraram em alta velocidade, permitindo que, em pouquíssimos dias, um evento de grande magnitude política e de ampla visibilidade se concretizasse.
Convites foram rapidamente disparados e prontamente atendidos pela quase totalidade das(os) diplomatas. Todas as providências logísticas foram adotadas rapidamente para que fosse montado o aparato no Palácio do Alvorada.
Não há como subestimar o volume de serviço público envolvido em todas as cautelas e formalidades demandadas por um evento com tantos representantes diplomáticos de mais alta classe.
A imprensa esteve presente, e a emissora governamental transmitiu o evento ao vivo. Quanto a esta, os investigados alegaram que a cobertura da TV Brasil foi justificada por se tratar de evento realizado pelo Presidente da República. O argumento, contudo, se torna silogístico, uma vez que o que se discute nos autos é justamente o desvio de finalidade de bens e prerrogativas detidos pelo primeiro investigado, em função do cargo.
Assim, é indubitável que a cobertura da TV Brasil foi viabilizada porque, formalmente, tratava-se de evento da Presidência. Mas isso é apenas um elemento basilar da causa de pedir, pois somente se pode discutir desvio de finalidade nos casos em que se está diante de quem detenha poder público."
GRAVIDADE DA CONDUTA
Convenham, o que vai acima é irrespondível. Num momento particularmente luminoso de seu voto, na página 130, o ministro lembra, afinal, as responsabilidades que pesam sobre os ombros de um presidente e os caminhos legais de que dispunha caso tivesse alguma dúvida real sobre o processo eleitoral. Evocando o Artigo 85, que trata dos crimes de responsabilidade, escreve o magistrado:
"(...) à luz do art. 85 da Constituição, não é dado ao Presidente da República levar a público alegações de fraude eleitoral por manipulação de voto com vistas a uma temerária confrontação ao TSE, especialmente quando lhe era plenamente possível acessar as informações corretas que já haviam desmentido essas alegações.
(...) fosse o primeiro investigado [Bolsonaro] a vítima originária do engodo em torno do IPL nº 1361/2018 [o suposto hackeamento do TSE], caberia a ele recorrer a canais institucionais, especialmente o contato com o TSE, a fim de melhor compreender os fatos em apuração e, após isso, avaliar medidas compatíveis com o cargo ocupado.
Portanto: nem opinião, nem dúvida, nem denúncia —não foi disso que tratou o evento de 18/07/2022 [a reunião com embaixadores]. A fala do primeiro investigado foi composta por conteúdos falsos e por ataques insidiosos à reputação de Ministros do TSE. Ambos os enfoques miraram esgarçar a confiabilidade do sistema de votação e da própria instituição que tem a atribuição constitucional de organizar eleições."
E Bolsonaro, leitoras e leitores, só fez o que fez, com a repercussão que se viu, porque era quem era. O abuso de poder político está escancarado.
USO INDEVIDO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO
As muitas páginas do voto do ministro dedicadas a evidenciar o uso indevido dos meios de comunicação e das redes sociais trazem um conteúdo que seria ainda mais assombroso se ele não estivesse fresco em nossa memória. Mesmo assim, não deixa de ser um tanto constrangedor que aquele senhor estivesse na Pesidência da República.
Como vocês devem se lembrar, Bolsonaro contou mentiras estúpidas sobre um hackeamento a páginas do TSE que teria demonstrado a vulnerabilidade do sistema eleitoral. Mentiu. Como mentiu ao sustentar que 12 milhões de votos lhe teriam sido subtraídos já no pleito de 2018. E isso foi amplamente divulgado em seus canais nas redes sociais, além da mobilização da estrutura oficial de comunicação. Viveu em estado de abuso continuado também nesse particular. No que respeita à reunião com os embaixadores, escreve Gonçalves às páginas 175 a 177:
"A exauriente análise pragmática do discurso proferido pelo primeiro investigado em 18/07/2022 não deixou dúvidas de que o então Presidente da República difundiu informações falsas a respeito do sistema eletrônico de votação, direcionada a convencer que havia grave risco de que as Eleições 2022 fossem fraudadas para assegurar a vitória de candidato adversário.
O evento foi transmitido ao vivo pela TV Brasil e por perfis do próprio pré-candidato em diversas plataformas, alcançando ampla repercussão e provocando, até mesmo, a remoção do conteúdo por iniciativa do YouTube. Os dividendos eleitorais eram facilmente estimáveis ante a popularidade desse tipo de conteúdo na internet e o conhecido êxito das lives de 2021 para gerar e manter mobilização política de caráter altamente passional e impermeável a contestações factuais vindas de fora da bolha.
Assim, no que diz respeito à tipicidade, a conduta se amolda à difusão deliberada e massificada, por meio de emissora pública e das redes sociais, de severa desordem informacional sobre o sistema eletrônico de votação e sobre a governança eleitoral brasileira, em benefício à candidatura dos investigados. Pontua-se que:
a) na reunião de 18/07/2022, o primeiro investigado sustentou que houve manipulação de votos nas Eleições 2018; inércia, conivência e até interesse de pessoas ligadas ao TSE que prejudicaram investigação de indícios de fraude eleitoral; e conluio para que o sistema se mantivesse vulnerável e pudesse ser manipulado para eleger um adversário;
b) a mensagem atentou diretamente contra a confiabilidade dos resultados eleitorais e, ainda, contra o papel institucional do TSE na preparação e organização do pleito, no desenvolvimento de sistemas, na interlocução com Embaixadas, na Comissão de Transparência Eleitoral e no Programa de Missões de Observação Eleitoral;
c) o discurso não abordou informações oficiais sobre o funcionamento do sistema eletrônico de votação e explicações dadas pelo TSE para o não acatamento de sugestões das Forças Armadas, concentrando-se em minar a autoridade do órgão de cúpula da Justiça Eleitoral de forma deliberada;
d) as informações falsas sobre fraudes que jamais ocorreram e a antagonização direta com o TSE foram exploradas estrategicamente ao longo do mandato do primeiro investigado e da campanha em 2022 para a formação de "bolhas", em uma prática discursiva cuja continuidade foi evidenciada pela evocação das lives de 2021 na fala de 18/07/2022;
e) conspiracionismo, vitimização e pensamentos intrusivos foram fortemente explorados no discurso de 18/07/2022 para incutir a ideia de que as Eleições 2022 corriam grande risco de serem fraudadas e de que o então Presidente da República, em simbiose com as Forças Armadas, estaria levando adiante uma cruzada em nome da transparência e da democracia;
f) a transmissão pela TV Brasil e pelas redes sociais da emissora e do primeiro investigado fizeram com que a mensagem do dia 18/07/2022 se alastrasse rapidamente, efeito potencializado pela tendência das informações falsas, sobretudo em temas políticos, a circular com maior velocidade e produzir mais engajamento que informações verídicas; e
i) o evento ocorreu quase um mês antes do início da propaganda eleitoral, em momento no qual já era notória a pré-candidatura de Jair Messias Bolsonaro à reeleição, e possibilitou a projeção midiática antecipada de temas que foram explorados continuamente na campanha, assegurando aos investigados vantagem eleitoral triplamente indevida: em função do momento, em função do veículo e em função do conteúdo."
ENCERRO
Gonçalves vai escrevendo, e a gente vê a figura -- asquerosa do que respeita à democracia -- do então presidente Jair Bolsonaro se desenhar à nossa frente.
Estamos diante do julgamento de uma Aije — Ação de Investigação Judicial Eleitoral. A consequência, no seu caso, já sem mandato, é a inelegibilidade. Mas tudo o que fez também tem implicações penais.
Não basta a inelegibilidade. Bolsonaro tem de ir para a cadeia. Mas disso se ocuparão outros processos, em outra esfera da Justiça.