Sem escolta, juíza ameaçada em Pernambuco se considera "marcada para morrer"; CNJ não vê riscos
Após um ano do assassinato de Patrícia Acioli, juíza que se notabilizou por adotar postura combativa em relação a policiais militares corruptos do Rio de Janeiro, a magistrada Fabíola Moura, 36, atualmente na comarca de São José do Belmonte, em Pernambuco, afirmou à reportagem do UOL que convive com ameaças de morte em função de sua luta para desarquivar um processo de tortura no qual são réus 19 PMs pernambucanos lotados em Tabira, no sertão do Pajeú (a 405km de Recife).
Assim como Acioli, que era titular da 4ª Vara Criminal de São Gonçalo, cidade da região metropolitana fluminense, Moura fez um pedido ao Tribunal de Justiça do seu Estado, em setembro do ano passado, para que fossem tomadas providências a respeito de sua segurança. Porém, viu sua escolta ser retirada depois que o delegado da Polícia Civil de Pernambuco José de Oliveira Silvestre supostamente não relatou a movimentação da juíza para retomar a investigação sobre os 19 PMs.
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A magistrada tentou apelar ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mas não obteve êxito --fato que foi divulgado para a imprensa pelo próprio órgão, o que, na avaliação do presidente da AMB (Associação dos Magistrados do Brasil), Nelson Calandra, trouxe ainda mais riscos para a pernambucana. Na opinião da juíza, que já chegou a registrar boletim de ocorrência no distrito policial de Tabira por tentativa de homicídio, ela seria uma pessoa "marcada para morrer".
"O grande problema é que o relatório formulado pelo delegado continha fatos que não correspondiam a verdade. Esse relatório mal feito fundamentou o voto do relator do CNJ [que indeferiu o pedido de manutenção de escola]. Esse documento me prejudicou bastante porque não explica a minha movimentação para desarquivar o processo contra os PMs. Ele repete os mesmos argumentos do TJ, e diz que não havia risco algum", explicou.
"Eu acredito que o meu caso é bem semelhante ao da Patrícia, pois enviei vários documentos ao Tribunal de Justiça e só tive uma resposta depois que eu sofri o atentado. O TJ se calou diante da minha situação. Não tive nenhuma resposta por escrito", completou ela.
A argumentação de Fabíola Moura inclui supostas tentativas de intimidação por parte de PMs envolvidos no processo, e casos nos quais, de acordo com a magistrada, sua vida esteve em risco. Ela cita, por exemplo, o dia em que teria sido "jogada para fora da estrada" por influência de uma parada brusca de um veículo da PM que fazia a sua escolta --na ocasião, ela e o marido seguiam de carro para Afogados da Ingazeira, cidade do interior de Pernambuco, depois de uma audiência sobre o processo de tortura, na qual ela teve que utilizar colete à prova de balas.
Após tentativas fracassadas de reconquistar o direito à escolta armada permanente, Moura foi transferida para o município de São José do Belmonte. No entanto, não se viu livre de situações que ela julga serem "ameaças sutis", que sempre ocorreriam em datas específicas, tais como uma véspera de audiência, por exemplo.
Em função da sensação de insegurança, Fabíola diz ter gastado quase R$ 1 milhão, obtido por meio de empréstimos, em blindagem, câmeras de vigilância e outros equipamentos de segurança. Para quitar as dívidas, a juíza tenta vender o seu imóvel, avaliado em R$ 950 mil, e pensa em "reorganizar a vida".
A transferência de comarca, na versão da magistrada, foi imposta pelo TJ: "Eles falaram ou você vai ou você vai. Eu não tive opção". Com a mudança, ela se afastou do processo que originou as supostas ameaças de morte, mas afirma que não vai desistir de julgar os 19 PMs.
"Vou continuar trabalhando com toda certeza para retomar esse caso e, se for comprovada a participação desses PMs, puni-los conforme a lei ordena", disse a magistrada, que ainda tenta recorrer ao CNJ e ao TJ-PE com o apoio da Amepe (Associação dos Magistrados de Pernambuco).
Entenda o caso
O processo que envolve os 19 PMs de Tabira é referente a uma denúncia do MP por crime de tortura, supostamente motivado por vingança, em 1998. Moura explicou ao UOL que, de acordo com o Ministério Público, os policiais torturaram dois agricultores da região em função de um disparo que teria ocorrido no batalhão de campanha militar.
NÚMEROS DO CNJ
150
ameaçados
Juízes que receberam ou ainda são alvos de ameaças em processos que envolvem réus que detêm concentração de poder.
61
escoltados
Dos 150 ameaçados, apenas 61 contam com escolta armada permanente. Para ter direito a esse tipo de proteção, o magistrado precisa comprovar para o Tribunal de Justiça do Estado que ele está efetivamente em risco.
16 mil
juízes
Quantidade total de juízes em todo o território brasileiro, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
"Um dos PMs foi o pivô do caso. Os agricultores que sofreram as agressões tinham discutido com ele, e o grupo entendeu que por conta disso os agricultores resolvem efetuar o disparo no batalhão. Por vingança, o grupo teria pego esses agricultores e os torturado para que eles confessassem. As vítimas negaram essas acusações, mas continuaram sendo agredidas. Há provas de que realmente eles [agricultores] são inocentes, mas o processo foi arquivado misteriosamente", explicou a juíza.
Ainda titular da comarca de Tabira, Moura deu início, em agosto do ano passado, aos protocolos necessários para desarquivar o processo. A atitude da magistrada, porém, não teria agradado aos desembargadores do TJ-PE, que exigiam um "fato novo" para que a peça fosse enfim desarquivada. Paralelamente, a PM também se posicionou contra.
Fabíola chegou a realizar duas audiências sobre o caso e passou a andar com escolta chefiada pelo delegado José de Oliveira Silvestre. Nas sessões, a magistrada foi obrigada a utilizar colete à prova de balas durante todo o tempo. Após finalizar a primeira audiência, a juíza saiu de carro com o marido até a cidade de Sertânia, onde deveria ter sido escoltada pela Polícia Civil até o município de Afogados de Ingazeiro.
No entanto, conta ela, um grupo de PMs foi escalado para garantir a segurança da juíza, dos quais dois são citados no processo que apura a acusação de tortura sofrida pelos dois agricultores. Moura os reconheceu e estranhou o fato, mas resolveu seguir viagem até que, em um determinado ponto da estrada, o veículo da PM freou bruscamente.
"O chefe da assistência policial do TJ havia me dito que a escolta seria à paisana e distanciada. Eu acreditei nisso. Mas quando cheguei no ponto combinado, que seria a partir de Arco Verde, andamos quase 30km e vimos que não estávamos sendo escoltados. Entrei em contato com a Amepe e, depois de quatro horas esperando, apareceram os PMs. Ou seja, a escolta que deveria ter sido feita por policiais civis ficou a cargo de policiais militares, sendo que dois foram citados no processo", explicou.
O carro da magistrada estava sendo conduzido pelo marido, que conseguiu evitar o acidente desviando o veículo para o acostamento. Na sequência, de acordo com a versão da juíza, os policiais teriam saído do carro da PM com o fuzil apontado para o carro da juíza. A Polícia Militar negou todas as afirmações de Moura, e disse que a conduta do policial foi motivada porque o marido de Fabíola teria piscado o farol.
A juíza pernambucana registrou boletim de ocorrência na delegacia de Tabira por tentativa de homicídio --o processo ainda está tramitando. Na versão da PM, de acordo com a própria magistrada, houve apenas uma "má interpretação dos fatos". Tudo isso ocorreu na véspera de uma audiência sobre o processo que envolve os 19 PMs, segundo ela.
"Um dos policiais responsáveis pela escolta disse que a atitude do meu marido foi errada, que ele não deveria ter feito aquilo porque não havia chance de os carros colidirem. As ameaças e intimidações são muito sutis", disse.
Intimidação
De acordo com Fabíola Moura, após a transferência para São José do Belmonte, policiais militares do 23º batalhão foram ao município para cumprir diligências de uma sindicância aberta pelo comando da corporação a fim de investigar a suposta tentativa de homicídio que ocorrera na estrada. No entanto, não houve qualquer tipo de comunicação oficial, segundo ela.
"Em momento algum eu combinei algo sobre isso. Não recebi nenhum documento oficial me convidando a prestar depoimento. Eles simplesmente foram lá na cidade, eram três policiais, dos quais um é réu no processo sobre os agricultores torturados. Mas ele é tenente e não podia realizar aquela oitiva, já que os envolvidos são oficiais", disse.
"Oficiei o comando da PM sobre essa irregularidade, eles foram embora e nunca mais voltaram. A sindicância foi paralisada", completou. Para a magistrada, a presença de um dos réus na diligência foi uma clara tentativa de intimidá-la.
Já no dia 29 de maio deste ano, Moura afirma ter identificado quatro homens do 23º batalhão circulando à paisana por São José do Belmonte. No entanto, ela não conseguiu descobrir com a corporação o motivo pelo qual esses policiais estavam no município onde ela é titular da comarca judicial.
"Recebi informações de que eles tinham ido almoçar, mas perguntei em todos os restaurantes da cidade, sem exceção, e não descobri se eles foram para isso mesmo. É muito estranho que um grupo de policiais do mesmo batalhão saia para outra cidade apenas para almoçar. Estou tentando descobrir se eles estão envolvidos com algum processo", disse.
Dívida de R$ 1 milhão
Moura afirmou à reportagem do UOL ter feito dívidas que giram em torno de R$ 1 milhão por conta de investimentos em segurança. "Após a retirada da minha escolta, coloquei um vigia 24 horas em casa, construí uma parede proteção no quarto, gastei muito dinheiro blindando carros, coloquei gradeamento, câmeras de segurança, enfim, tudo o que julguei necessário".
Para tal, ela e o marido pegaram cerca de R$ 500 mil de empréstimos, dos quais aproximadamente cem mil reais foram gastos apenas com blindagem de carros. Ela também optou por comprar um veículo novo, maior, depois de quase ter se acidentado na estrada --a suposta tentativa de homicídio. Para quitar a dívida total, Moura planeja vender o seu imóvel, que estaria avaliado em R$ 950 mil.
"Tudo isso poderia ter sido evitado se a escolta não fosse retirada. Mas agora eu penso em reorganizar a vida", afirmou a magistrada.
CNJ recusa escolta
Em fevereiro deste ano, o CNJ concluiu que Fabíola Moura não corria qualquer tipo de risco e deferiu a retirada da escolta que era oferecida à magistrada --carro blindado e acompanhamento policial. O ministro Carlos Alberto Reis de Paula entendeu que "não havia provas que possam dizer que a juíza estava perigo".
O relator do processo no conselho fundamentou o seu voto no inquérito policial da Polícia Civil de Pernambuco e no serviço de inteligência do Tribunal de Justiça de Pernambuco que constataram que não há mais ameaças à juíza.
A corregedora nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon, afirmou ter conversado com o presidente e o corregedor do TJ-PE. Ela disse à época que os dois garantiram que não havia mais riscos para a segurança da juíza. "Ela estava realmente apavorada, mas o serviço de inteligência não indicava [motivos para] qualquer preocupação".
Segundo notícias veiculadas pela imprensa local, o Tribunal de Justiça já teria tentado aposentá-la, apesar da pouca idade: 35 anos. O TJ-PE teria tentado ainda provar a insanidade mental da magistrada, submetendo-a a dois exames médicos. Porém, os resultados mostrariam que Moura está apta a exercer suas funções.
"Mesmo eu tendo sido examinada por uma junta de médicos do TJ-PE e a conclusão ter sido para eu continuar a trabalhar, o então presidente do TJ-PE, José Fernandes de Lemos, resolveu me submeter a uma junta psiquiátrica, que concluiu que estou apta para trabalhar e não sofro qualquer distúrbio mental", afirmou ela em nota divulgada em março.
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