Topo

Estudo inédito revela surgimento de "nova milícia" mais discreta no Rio; criminosos estariam "mascarando" homicídios

O ex-vereador pelo PMDB Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho, foi preso no dia 26 de dezembro do ano passado, acusado de chefiar a milícia Liga da Justiça, que atua em bairros da zona oeste do Rio de Janeiro - Gustavo Lopes/AGIF/Folha Imagem
O ex-vereador pelo PMDB Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho, foi preso no dia 26 de dezembro do ano passado, acusado de chefiar a milícia Liga da Justiça, que atua em bairros da zona oeste do Rio de Janeiro Imagem: Gustavo Lopes/AGIF/Folha Imagem

Hanrrikson de Andrade

Do UOL, no Rio

11/10/2012 06h00

"A nova milícia é muito mais discreta". A frase do sociólogo Ignacio Cano, coautor do estudo "No sapatinho: A evolução das milícias no Rio de Janeiro", resume a principal descoberta da pesquisa acadêmica desenvolvida entre 2008 e 2011 pelo Laboratório de Análise da Violência da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Em razão do aumento da repressão, os milicianos passaram a adotar um comportamento mais silencioso, o que reforça, de acordo com os pesquisadores, a necessidade de o poder público investir no trabalho de inteligência policial.

Divulgado nesta quarta-feira (10), o levantamento realiza um teste empírico que indica que essa nova postura pode estar associada ao aumento do número de ocorrências envolvendo pessoas desaparecidas. Até 2008, a milícia --que já foi vista pela opinião pública como "mal menor" em comparação com o tráfico de drogas-- praticava crimes como homicídios e tortura de forma bem mais explícita, afirmam os pesquisadores.

Desde a conclusão da CPI das Milícias na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio), em 2008, o que levou o Ministério Público e órgãos de segurança pública a intensificar as ações de repressão, o desaparecimento sumário se tornou, segundo os autores Ignacio Cano e Thaís Duarte, uma opção para "esconder a violência homicida e não deixar provas dos crimes".

Dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) mostram que houve um salto de quase 30% em relação aos casos de desaparecimento no período entre agosto de 2011 e agosto de 2012 --o número de ocorrências registradas em áreas com presença de milícia passou de 51 para 66. Entre 2003 e 2011, a razão entre vítimas de desaparecimento e mortes violentas subiu de 0,5 no início da série, isto é, duas mortes para cada desaparecimento registrado, para mais de um. Os pesquisadores ressaltam, porém, que o vínculo entre os dois tipos de crime constitui um "desafio metodológico" sujeito a muitas variáveis.

"Nós procuramos fazer uma percepção qualitativa dessas áreas, e constatamos que o poder letal das milícias continua forte. Mas houve, por outro lado, uma quebra do discurso de legitimação desses grupos. É como se as máscaras estivessem caindo. Descobrimos, por exemplo, que a incidência de policiais atuando como milicianos diminuiu, e isso está diretamente ligado ao trabalho de repressão que se intensificou desde que os profissionais de imprensa do jornal 'O Dia' foram torturados no Batan [favela da zona oeste do Rio, atualmente pacificada]. Na verdade, esse episódio foi o grande ponto de inflexão em relação à evolução das milícias", afirmou Duarte, que alerta para o crescimento da participação de civis nos grupos paramilitares --os chamados "laranjas" ou "testas de ferro".

"O estudo confirma a tese de que há um processo em curso de enfraquecimento das milícias. Elas continuam operando nos mesmos territórios, porém de forma muito mais discreta. Claro que o nível de violência é igual, ainda são muitos os casos de terror, extorsão, entre outros, mas deixou de ser interessante para esses grupos a questão da exposição. A diferença é que agora eles têm menos força em comparação com a época que pode ser considerada o apogeu das milícias, ou seja, entre 2006 e 2007 [período que antecede a criação da CPI das Milícias]. Elas perderam, inclusive, muito de sua força econômica, pois algumas atividades como a submissão do gás e a exploração do 'gatonet' [TV a cabo ilegal] passaram a ser reprimidas de forma mais intensa. A nova milícia adota um modelo de máfia silenciosa", explicou Cano.

Braço político

Os pesquisadores do Laboratório de Análise da Violência afirmam que a "quebra do discurso de legitimação" das milícias também fez com que esses grupos paramilitares perdessem força política. Há alguns anos, grandes chefes de organizações mafiosas, tais como a Liga da Justiça (maior milícia da zona oeste), ocupavam cargos públicos na Câmara de Vereadores e na Assembleia Legislativa do Rio.

Cano e Duarte utilizam os exemplos dos irmãos Natalino e Jerônimo Guimarães, este último conhecido como "Jerominho", para argumentar sobre uma nova percepção dos eleitores a respeito de milicianos que se lançam na vida política. "Isso começou a mudar a partir da prisão dos líderes da Liga da Justiça. A filha do Jerominho, por exemplo, não se elegeu, nesta eleição", afirmou a socióloga.

Segundo o estudo, existiam "suspeitas de que a expansão das milícias em 2006 e 2007 estava associada a um projeto político" já em 2008, ano em que o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) presidiu a CPI das Milícias --mais de 200 pessoas foram indiciadas a partir do relatório da comissão. "Hoje, as evidências nessa direção são mais contundentes. O relatório da CPI contém informações sobre relações entre milicianos e políticos durante a campanha eleitoral de 2006 e relata indícios de curral eleitoral em áreas de milícia nas votações de vários desses políticos", dizem Cano e Duarte.

"Esse projeto político está hoje aparentemente desmantelado. Muitos dos supostos integrantes não foram reeleitos e os que se mantém na política ativa fazem o possível para se afastar do tema das milícias no debate público, pois ele virou um lastro eleitoral. De acordo com um entrevistado, o que existe agora é a suspeita de que as milícias poderiam lançar candidatos desconhecidos, que não fossem membros notórios das suas organizações", completam.

O estudo

Ignacio Cano e Thaís Duarte entrevistaram 46 moradores de territórios sob domínio de grupos paramilitares --a maioria na zona oeste do Rio--, além de especialistas, promotores do Ministério Público, policiais e autoridades de segurança pública.

A dupla de sociólogos consultou os bancos de dados do ISP, do Disque-Denúncia e do Disque-Milícia. Reportagens sobre o tema de dois grandes jornais cariocas também compõem a pesquisa.

A expressão escolhida pelos pesquisadores para dar nome ao estudo é uma gíria utilizada pelos cariocas que diz respeito à discrição, isto é, significa fazer alguma coisa com cautela.