"Tão cedo não vou querer fazer festas", diz jovem que se salvou após colocar cabeça em freezer da boate Kiss
Ingrid Preigschadt Goldani, 21, que se salvou do incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS), no último dia 27 após colocar a cabeça no freezer para respirar antes de tentar fugir da casa noturna em chamas, recebeu alta nesta quinta-feira (7) do Hospital Conceição, em Porto Alegre, e conversou com o UOL. Feliz por ter superado momentos difíceis nas duas últimas semanas, mas triste por tudo o que aconteceu, a jovem admitiu que precisará de um tempo para voltar a festas com a turma de amigos.
Apesar de querer que os envolvidos diretamente na tragédia sejam punidos, a jovem prefere não culpar ninguém, por entender que o incêndio não foi premeditado. “Acho que a maior condenação é a própria consciência”, revelou a estudante de enfermagem da UFSM (Universidade Federal de Santa Maria) que estava trabalhando na casa noturna no dia da tragédia.
Ingrid, que trabalhava na Kiss, foi o primeiro caso de pneumonia química entre as vítimas do incêndio e só sobreviveu porque foi retirada do local por uma pessoa que ainda não conseguiu identificar. Porém, horas depois apresentou os sintomas da doença e foi internada na UTI em Santa Maria. Logo em seguida, teve que ser induzida ao coma, entubada e, posteriormente, transferida para a capital gaúcha. Apesar da morte de 238 pessoas e do sofrimento de muitas famílias, inclusive da dela, ela prefere olhar para frente e espera que a sociedade aprenda uma lição como o ocorrido, para evitar novas tragédias como a de Santa Maria.
Os personagens da tragédia
Os donos |
Mauro Hoffmann, 47, e Elissandro Spohr, o Kiko, 29, são os donos da casa noturna Kiss, onde aconteceu o incêndio que matou até agora 237 pessoas no dia 27 de janeiro. Eles são suspeitos de manter a boate sem plano contra incêndio adequado, com saídas de emergência insuficientes e equipamento, como extintores, defasados. Também é possível que o local estivesse superlotado. Ambos estão presos |
A banda |
A Gurizada Fandangueira se apresentava na boate na hora da tragédia. A suspeita para o início do incêndio é o uso de um sinalizador, inapropriado para um show fechado, durante a apresentação. A banda diz que sempre utilizou esse tipo de pirotecnia e alegam pane elétrica como causadora do fogo. O vocalista, Marcelo Santos, e o produtor Luciano Bonilha Leão estão presos. O gaiteiro Danilo Jaques, 30, morreu no incêndio |
O delegado |
O delegado regional Marcelo Arigony chefia a investigação. Ele, que também é professor de direito e perdeu alunos e uma prima de 18 anos na tragédia, já afirmou que a espuma usada como isolamento acústico na boate foi a grande vilã do incêndio e que a casa havia feito reformas "ao arrepio de qualquer fiscalização, por conta e risco dos proprietários" |
Responsável pelo primeiro alvará |
O então major Daniel da Silva Adriano, do Corpo de Bombeiros, assinou, em 2009, o alvará de prevenção e proteção contra incêndio da boate, válido por um ano. Foi esse documento que permitiu a abertura da casa |
Responsável pela renovação do alvará |
O capitão Alex da Rocha Camillo assinou a renovação do documento, em 2011. Segundo o registro, o local "foi inspecionado e aprovado, de acordo com a legislação vigente" |
O prefeito |
Cezar Schirmer (PMDB) foi reeleito prefeito de Santa Maria em 2012. O político vive um embate com o governo estadual, do petista Tarso Genro, responsável pelos bombeiros. O prefeito afirma que a prefeitura local não tem culpa pela tragédia e a aponta os bombeiros como responsáveis pela falta de fiscalização do sistema de combate a incêndios |
Leia a entrevista na íntegra:
UOL: Após tudo o que aconteceu como você, como resume os fatos que ocorreram na boate Kiss?
Ingrid Goldani: Apavorantes. É uma coisa que posso dizer de tudo isso. Porque o que vimos lá dentro ninguém nunca esperou ou imaginou que pudesse ver alguma coisa parecida.
UOL: O que você lembra dos momentos desde que notou o incêndio, passando pela estratégia de colocar o rosto do freezer até sair da boate?
Ingrid: Infelizmente, me lembro de tudo. Cada minuto que eu passei lá dentro perfeitamente, como se fechasse os olhos e me encontrasse lá dentro de novo.
UOL: Você culpa alguém pela tragédia na boate?
Ingrid: Sinceramente, não culpo ninguém porque nenhum ser humano desejaria um mal daquele tamanho, ou algo parecido, para alguém. Foi falha e todos têm o direito de falhar. Ninguém pede para falhar. Acho que foi um conjunto de falhas humanas e, infelizmente, com muita má sorte.
UOL: O que o episódio vai mudar na tua vida?
Ingrid: Sinceramente, a única coisa que vou mudar é que vou me manter mais tempo perto das pessoas que amo, porque não sabemos o dia de amanhã e, com certeza, não ter medo de fazer as coisas.
UOL: Acredita que vai ter dificuldades de trabalhar ou ir a boates?
Ingrid: Acho que trabalhar, não mais. Depois dessa tragédia, não teria força psicológica para isso e fazer festa, não posso dizer que nunca mais. Sou daquelas pessoas que nunca diz nunca, mas tão cedo não vou querer me enfiar em algum lugar para fazer festas.
UOL: Como foi o período que ficou no hospital sem conseguir acompanhar as notícias e conversar com os amigos e colegas?
Ingrid: Foi um dos piores porque ansiava em saber das pessoas. Não consegui sair da boate enquanto não soube de praticamente todo mundo. Fiquei mais de quatro horas na frente [da casa noturna] porque precisava saber do resto da equipe. Porque os meus amigos que estavam na festa, eu sabia que estavam fora, mas a equipe tinha visto muito poucos saírem. Então, enquanto não tive certeza se eles estavam vivos ou mortos, não consegui sair lá da frente.
UOL: Quando voltou do coma, como foi começar a receber as informações sobre os amigos e conhecidos?
Ingrid: Foi bem complicado porque na tarde que fui internada sabia de quase 90% sobre tudo o que estava acontecendo. Quem tinha morrido, quem estava salvo e das internações. Estava em um estado bem sensível, bem afetada. Depois que eu saí do coma, que fui para o quarto no hospital, poucas notícias me abalaram porque já sabia de tudo. Então, a maioria das notícias que tive lá foram boas. Graças a Deus fiquei sabendo que muitos amigos estavam reagindo, que haviam saído ou estavam por sair.
UOL: Por ter sido o primeiro caso de pneumonia química pela inalação da fumaça tóxica, o governo deu uma atenção especial para você ou sua família?
Ingrid: Por um acaso do destino, a minha vó teve um contato muito próximo com o ministro porque no momento em que foi detectada a minha pneumonia, que fui internada em Santa Maria, que fui posta em coma, entubada e tudo, tinha um contato na base aérea que ia conseguir um transporte aéreo para a minha mãe, para que ela fosse o mais rápido possível para Porto Alegre. Devido a alguns contratempos, ela acabou viajando para Porto Alegre no avião do ministro [da saúde, Alexandre Padilha]. Então, podemos dizer, que ela teve um contato bem maior que o resto dos familiares.
UOL: O que você espera das investigações e das mudanças que os órgãos públicos e a sociedade estão fazendo depois da tragédia?
Ingrid: Sinceramente, me sinto mal porque teve que acontecer um episódio tão grande e triste para o pessoal se mobilizar por uma coisa que deveria ser uma obrigação de todo mundo. Em relação à Justiça, só quero que os culpados paguem pelos seus erros. Acho que a maior condenação dos envolvidos é a própria consciência, porque acho que nenhum deles vai conseguir dormir sabendo que foi o responsável pela morte de tanta gente que tinha tanta vida pela frente.
UOL: Você encontrou o herói que te salvou na boate?
Ingrid: Ainda não. Uma amiga próxima me falou que um menino estava falando que tinha me ajudado na boate, mas ainda não consegui contato com ele e também não tenho certeza. Rezo para que seja. Se não for, ainda vou procurar e espero conseguir encontrar.
UOL: Qual o recado você deixa para as famílias das vítimas e dos sobreviventes?
Ingrid: Primeiro, gostaria de desejar muita força. Também gostaria de pedir para que eles permaneçam ao lado das pessoas que gostam e que estão dispostas a dar o lado positivo delas. Porque só o amor das pessoas que estão em volta, a fé, o carinho e atenção que vão manter a gente em pé. E também, que não deixem de viver porque, com certeza, o pessoal que se foi não ia querer que a gente deixasse de viver. Eles querem que a gente continue lutando. E, se alguma coisa mudar, e eu acho que está mudando, acredito que eles vão ficar muito felizes por todos nós.
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