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Médico explica como inalação de fumaça afeta saúde

Policial coloca flores em frente à boate Kiss, onde dezenas de pessoas morreram asfixiadas - AFP
Policial coloca flores em frente à boate Kiss, onde dezenas de pessoas morreram asfixiadas Imagem: AFP

29/01/2013 09h13

Sobreviventes de tragédias como o incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, em alguns casos têm de conviver com sequelas físicas e psicológicas para o resto de suas vidas.

A BBC Brasil conversou com o pneumologista José Eduardo Afonso Júnior, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, em São Paulo, para saber como a inalação de fumaça em incêndios afeta o organismo.

Afonso explicou que há dois problemas críticos em situações de incêndio: a inalação de substâncias tóxicas e as queimaduras internas provocadas pela inalação de fumaça quente.

"O monóxido de carbono que se forma a partir da queima de materiais entra pelo pulmão e cai na corrente sanguínea, ocupando espaço nos glóbulos vermelhos onde deveria estar o oxigênio", disse.

"Quando os glóbulos vermelhos ficam tomados por monóxido de carbono, não conseguem transportar oxigênio, o que provoca a morte".

O médico citou como exemplo casos onde pessoas morrem por inalar monóxido de carbono em uma garagem fechada.

Tóxica e quente

Mas, no caso de incêndios, a fumaça inalada é perigosa não apenas por carregar toxinas, como também por sua alta temperatura.

"A fumaça gerada pela combustão de produtos que espumam, como plástico, já é altamente tóxica. Mas, além disso, a alta temperatura dessa fumaça causa lesões na traqueia e nos brônquios, chegando até os alvéolos" (estruturas localizadas dentro do pulmão onde ocorre a troca de gases - oxigênio e gás carbônico).

O médico explicou que, quando a fumaça muito quente é inalada, os brônquios da pessoa se fecham.

"É como uma crise aguda de bronquite que fecha os brônquios e não deixa o ar passar", disse. "Você sofre pela falta de ar e pode sentir dor porque a traqueia tem nervos que dão sensação de dor".

"A combinação da inalação do monóxido de carbono com a lesão térmica leva ao óbito em poucos minutos"

Boate Kiss

Comentando sobre a tragédia na casa noturna gaúcha, Afonso disse supor que a maioria das vítimas tenha morrido por asfixia.

"A impressão que tenho, com base apenas nas imagens que vi, é de que a maior parte morreu por causa da fumaça e do monóxido de carbono, não pela queimadura em si".

Segundo Afonso, quando há queimaduras internas por fumaça quente, a face e os cabelos da vítima também ficam queimados.

"Pelo que ouvi, os corpos não estavam carbonizados, Então, suponho que a causa da morte tenha sido asfixia".

Se há muita fumaça, e dependendo da concentração de toxinas, a pessoa perde a consciência mais rápido, ele explicou.

Ele enfatiza, no entanto, que seus comentários são hipotéticos, pois ele não possui informações específicas sobre o caso da boate Kiss.

Sequelas

Enquanto alguns, nesse momento, lutam para enfrentar a perda de entes queridos, outros velam, ansiosos, pelas dezenas de jovens internados nos hospitais da região.

Em sua entrevista à BBC Brasil, o pneumologista José Eduardo Afonso Jr. disse que muitos pacientes que sobrevivem a tragédias como essa se recuperam completamente.

É o caso, por exemplo, de pacientes que sofreram intoxicação por monóxido de carbono e perderam a consciência mas foram resgatados a tempo.

"Ficam no suporte de oxigênio e sob monitoramento, mas o monóxido de carbono vai sendo liberado e há mínimas sequelas", explicou.

"Apenas em casos em que a oxigenação ficou baixa durante muito tempo pode haver sequelas neurológicas".

Segundo Afonso, a lesão neurológica provocada pela ausência prolongada de oxigênio no cérebro é conhecida como encefalopatia anóxica.

"Quando isso ocorre, o paciente não acorda, fica em coma".

"Mas se a oxigenação foi revertida rapidamente, o paciente tem condições de ficar bem".

Mais problemática, ele explicou, é a lesão térmica e química.

"A longo prazo, a cicatrização dessas lesões térmicas pode levar a doenças crônicas, como acontece com fumantes", explicou. "Em casos mais sérios, pode haver limitação das atividades normais do paciente".

Isso ocorre porque, segundo Afonso, a cicatrização não gera um tecido idêntico ao anterior. O tecido cicatrizado muitas vezes perde sua propriedade básica, de trocar oxigênio com a corrente sanguínea de maneira eficiente.

"Dependendo do grau de lesão, há sequelas leves, onde a pessoa vive bem. Se a lesão for mais grave, a pessoa pode precisar de suplementos de oxigênio para o resto da vida, porque o seu pulmão não dá conta".

Outra consequência grave de lesões térmicas é que as queimaduras nas vias respiratórias tiram a proteção natural dos tecidos e deixam a pessoa mais vulnerável a infecções.

"A destruição da camada interna dos brônquios e da traqueia favorece infecções e muitos morrem mais tarde, vítimas dessas infecções".

"Aliás, infecções são uma causa comum de morte entre queimados, tanto em queimaduras de pele como de pulmão", explicou.

Uma outra sequela comum entre sobreviventes de incêndios é o acúmulo, dentro do pulmão, de partículas sólidas dos produtos em combustão, carregadas pela fumaça.

"Aquilo se solidifica e fica depositado lá, o pulmão não consegue se livrar desses resíduos", explicou Afonso.O médico lembrou que há várias doenças provocadas pelo acúmulo de resíduos nos pulmões, não apenas em consequência de incêncios.

Trauma emocional

De maneira geral, a sensação de falta de ar tende a provocar pânico profundo nas pessoas, disse o pneumologista.

Ele explicou que muito depende da pessoa e do que ela vivenciou. Mas contou que transtornos de ansiedade (incluindo-se, em casos extremos, a Síndrome do Pânico) e depressão são comuns nesses casos.

"Se os seus amigos afundam sua cabeça na piscina, ficar sem respirar, mesmo que por poucos segundos, já é suficiente para causar um pânico grande".

"Entre os sobreviventes de um incêndio como esse, além da situação de estresse e tumulto, quem não conseguiu respirar certamente viverá um trauma", ele disse.

Afonso citou casos de pessoas que se recuperaram bem mas começaram a ter crises de falta de ar, sem qualquer justificativa pulmonar.

"Com certeza, esses pacientes devem procurar ajuda psicológica", recomendou o pneumologista.