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Indignação leva professora a largar escola e ajudar crianças na periferia desde 1994

Tia Dag, fundadora da Casa do Zezinho, no Capão Redondo (zona sul de São Paulo) - Gabriela Fujita/UOL
Tia Dag, fundadora da Casa do Zezinho, no Capão Redondo (zona sul de São Paulo) Imagem: Gabriela Fujita/UOL

Gabriela Fujita

Do UOL, em São Paulo

08/03/2017 12h00

O projeto de vida já era bem claro 23 anos atrás. O imóvel onde Dagmar Garroux poderia morar com sua família na zona sul de São Paulo foi transformado em outro tipo de casa: um lar para o conhecimento e para o bem-estar de crianças e adolescentes que vivem na periferia. Antes de falar sobre sua história, porém, ela logo avisa: “Pode me chamar de Tia Dag, todo mundo me conhece assim”.

Tia Dag é pedagoga formada pela USP (Universidade de São Paulo), filha da classe média paulistana e “a mulher mais indignada do mundo”, como ela mesma se descreve. O incômodo vem da desigualdade social que ela enxerga na cidade (e no Brasil) e da diferença entre o que alguns podem e outros não.

“A indignação começa com os governantes. Se o Brasil fosse para os brasileiros, seria uma potência mundial, mas não é. Pega uma escola da periferia e uma escola particular, é tudo diferente. Essa criança não está competindo lado a lado”, ela afirma.

Com a missão de abrir portas para os mais pobres surgiu, em março de 1994, a Casa do Zezinho. A ONG no Capão Redondo (22 km do centro) oferece uma série de atividades educacionais e profissionalizantes --são 42 oficinas--, a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, emocional ou socioeconômica, no contraturno da escola.

A ideia nasceu bem antes, nos anos 1970, em meio à ditadura militar, quando ela colocava dentro de casa jovens perseguidos por grupos de extermínio e filhos de exilados políticos. Chegou a ter 50 de uma só vez, convivendo como “irmãos” de seu único filho, que hoje trabalha a seu lado.

“Eu já estava dentro das favelas, ajudando a alfabetizar”, ela conta sobre esse período.

Até janeiro de 2017, sua ONG já tinha recebido 20 mil pessoas e atendia, naquele momento, 1.500 “zezinhos e zezinhas”. Com a crise econômica como justificativa, alguns parceiros da entidade deixaram de colaborar ou reduziram as doações, e foi preciso desativar 600 vagas, que Tia Dag espera poder recuperar em breve.

"Cadê a mãe dessas crianças?"

Das muitas histórias vividas nessa trajetória, algumas são lembradas com mais destaque, especialmente as que envolvem meninas e mulheres. Ela recorda, por exemplo, a avó que tinha 11 netos menores de idade vendendo flores no largo da Batata (zona oeste da capital).

“Cadê a mãe dessas crianças?”, Tia Dag perguntou à senhora. “Deus me deu um castigo. Só filha mulher. Fazem filho, jogam aqui, vão embora, e estou com esses 11 netos”, ela respondeu.

A afirmação “terrível” sobre ter filhas mulheres foi ouvida há pouco tempo e fez com que a pedagoga acolhesse todas aquelas crianças na Casa. E a frase também exemplifica o que ela denomina o “Ciclo das Marias”.

“A Maria está estudando, está na escola, vem sua mãe e diz que ela vai ter que sair da escola, porque a mãe tem que trabalhar e ela vai ter que ajudar em casa, cuidando dos irmãos. Ela cresce pensando que é isso que vai acontecer em sua vida. Acaba se casando, tem uma filha, uma nova Maria, e vai fazer a mesma coisa”, diz Tia Dag.

“Esse ciclo não para. Nosso trabalho aqui é exatamente cortar essa roda. Você vai se casar quando for independente, quando tiver sua estrutura, para não ser dependente de ninguém.”

Encontro com menina que se prostituía

Certa vez, Tia Dag encontrou uma menina de dez anos que se prostituía no Parque Santo Antônio, em São Paulo. Segundo ela, o diálogo transcorreu assim:

- Quanto você ganha por transa?, perguntou Tia Dag.

- R$ 10...

- Só?

- Por quê, Tia Dag, você nunca pensou em ser puta?

A tia teve que ser rápida na resposta e foi bem direta:

- Olha, nunca pensei, mas, se eu tivesse que ser puta, seria em Brasília. Lá você ganha R$ 3.000 por transa, mas tem que falar duas línguas pelo menos, inglês, espanhol, e ter um corpo supersarado. Você, no Parque Santo Antônio, morre daqui a dois ou três anos com doenças venéreas ou vai engravidar...

Três dias se passaram, até que a menina voltou a falar com ela, afirmando que queria ser prostituta em Brasília. Tia Dag, então, sugeriu que ela parasse de transar imediatamente e se preparasse na ONG, estudando e fazendo esportes. “Hoje, se você quer saber, ela é dentista.”

Dos 130 funcionários que trabalham na ONG atualmente, 80% já foram “zezinhos”.

Qual era o seu sonho?

Poder ajudar as crianças e adolescentes que frequentam a ONG passa pela rotina de conhecer o lugar e as pessoas de onde eles vêm. Por isso, também os pais -- e as mães em especial-- são recebidos na Casa.

“A nossa preocupação geralmente é o jovem, mas tem que ter essa preocupação com a mãe. Ninguém nunca perguntou para as mães que vêm aqui qual era o sonho delas. Eu já escutei: bailarina, médica, professora. Elas chegam a chorar. Eu incentivo a que terminem seus estudos para alcançar algum sonho, mesmo que não seja o de ser bailarina.”

Uma das maiores satisfações para Tia Dag é ver meninas que ali estão crescendo trazerem as mães e avós para os cursos de alfabetização, de música...

Quem é Tia Dag?

Mãe de um filho único, avó de duas netas e mãe de santo. Protegida por um grande são Jorge, colocado em um altar com outras imagens perto de sua mesa de trabalho, Tia Dag se vê como “uma caixinha de coisas”.

“Nos anos 1970, eu era ateia. Até convenci padre a tirar a batina, mas isso é uma outra história”, ela diz, rindo. “Hoje, eu tenho um terreiro de umbanda, são 300 médiuns, funciona aqui do lado, às quintas e sábados, mas não tem nada a ver com a Casa do Zezinho, que é laica.”

Sua vontade? Que o outro possa ganhar o mundo.

“Pretendo que a Casa do Zezinho seja uma casa de formação de educadores. A ponte tem que ser atravessada, dos dois lados. Educar é um ato de amor, só isso, ter boa vontade.”