Vizinhos afirmam que pais de criança encontrada em barril pareciam 'gentis'
Felipe de Souza
Colaboração para o UOL, em Campinas (SP)
01/02/2021 07h48
Moradores do bairro Jardim Itatiaia, na periferia de Campinas, interior de São Paulo, se surpreenderam ao descobrir que havia uma criança mantida em cárcere privado dentro de um barril em uma das casas. O caso, que foi descoberto anteontem pela Polícia Militar, chocou todos os moradores da cidade - ele chegou a ver o Réveillon por um buraco na parede da casa.
O UOL foi ao local onde o menino de 11 anos morava, junto com o pai adotivo e a madrasta. O medo, especialmente depois de um boato falso de que a mulher teria sido liberada da delegacia, tomou conta dos moradores do conjunto de casas simples, de tijolos à vista, na área ocupada há mais de 30 anos, que nem asfalto tem.
Ninguém quis dar nomes ou autorizou fotos. Mas os vizinhos contaram como percebiam a rotina da família.
Uma das vizinhas, uma mulher de cerca de 30 anos, disse que via pouco o homem de 31 anos, mas a companheira dele, que não teve a idade revelada, era muito conhecida no bairro e parecia gentil. "Na sexta-feira (29) ela nos chamou para entregar café, bolo e alguns biscoitos. Ela sempre preparava comida para distribuir pelo bairro", afirmou ao UOL.
Porém, algo sempre chamou a atenção da jovem: tudo sempre acontecia do portão da casa para fora. "Nunca entrei lá, nem ninguém aqui no bairro podia passar do portão. A gente achava estranho, mas pensávamos que eles queriam discrição, algo assim", completou.
Segundo o 2º sargento Mike Jason, que acompanhou a ocorrência no sábado, a mulher cuidava de, ao menos, 13 cachorros. "Ela tinha uma ONG, não sei se legalizada, mas cuidava dos cachorros abandonados. Tanto que você via que eles estavam bem tratados, enquanto que, em cima, mantinha uma criança sem comida", comentou.
Os vizinhos começaram a desconfiar que alguma coisa errada acontecia na casa depois que viram um 'vulto' em um buraco numa parede, há cerca de um ano.
"A gente sabia que a relação deles com a criança era meio tumultuada, eles reclamavam muito que o menino era hiperativo. Começamos a estranhar quando notamos que o menino não aparecia mais na rua para brincar, como sempre fazia", contou outra vizinha, de 42 anos.
Eles afirmaram que tentaram obter alguma informação, mas a família nunca se abria. Até que conseguiram ver o rosto da criança. Uma denúncia chegou a ser feita ao Conselho Tutelar, e depois outra à Polícia Militar, que terminou na descoberta do menino dentro do barril.
Muito magro e debilitado, o menino foi levado ao Hospital Ouro Verde, onde segue internado. Segundo a Prefeitura de Campinas, que administra a unidade de saúde, ele tem "boa condição de saúde".
O menino tem quadro de desnutrição grave, e vai continuar internado até alcançar peso considerado adequado para a idade.
Até o irmão do homem preso disse que não tinha acesso à residência. Paulo Henrique dos Santos, 36, disse à reportagem que, todas as vezes que precisou falar com o irmão, também era do portão para fora.
"Se eu soubesse que essa situação estava acontecendo, jamais iria permitir. Meu irmão se afastou da família há alguns anos. Apesar de morar no mesmo bairro, não tínhamos tanto contato. Mas, quando fui na casa dele, fui recebido apenas pela namorada dele, do lado de fora", afirmou.
Boato de soltura preocupa vizinhos
Ontem à noite, mensagens em aplicativos e redes sociais começaram a se espalhar, dizendo que a mulher havia sido liberada da delegacia.
Ela, o homem e a meia-irmã do menino ainda estão presos, conforme apurou a reportagem.
Um boletim de ocorrência foi registrado por tortura, que pode dar pena de dois a oito anos de prisão. No caso das mulheres, como omissão, com reclusão que pode variar de um a quatro anos. A Polícia Civil arbitrou fiança de R$ 5 mil para elas, valor que ainda não foi pago.
Conselho Tutelar sabia de problemas, mas não da gravidade
O conselheiro tutelar da região Sul de Campinas, Moisés Sesion, afirmou durante entrevista coletiva ontem que houve uma falha no acompanhamento do menino.
"O Conselho sabia que a família tinha problemas de relacionamento, o histórico com uso de drogas, e por isso tinha o acompanhamento da equipe de 'média complexidade' para casos assim. Mas, nunca havia chegado a informação de que o menino era mantido nessas condições", disse.
O conselheiro explicou que, assim que o órgão recebe uma informação de que uma família está em situação de vulnerabilidade, encaminha o caso para equipes responsáveis.
O menino, no caso, é acompanhado por profissionais ligados ao Creas (Centro de Referência Especializado em Assistência Social) e o Caps-IJ (Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil), para a avaliação de uma possível doença psiquiátrica.
"Não há nenhum diagnóstico que confirme que o garoto esteja doente. Pode ser hiperatividade normal da idade. Nem no Caps há uma confirmação com 100% de certeza", conta Sesion.
Sobre a denúncia feita por moradores do bairro, o conselheiro disse que o órgão não tem a função de "investigar denúncias". O Ministério Público já foi notificado sobre a situação.
Após a repercussão do caso, hoje todas as equipes devem se reunir para tentar descobrir "onde" foi a falha de acompanhamento do caso. Ninguém sabia responder, por exemplo, se a vítima estava matriculada em uma escola da cidade — mesmo sem aulas presenciais por causa da pandemia ou quando foi a última visita das equipes de monitoramento do CREAS e Caps.