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Em queda, registros de racismo esbarram em falta de critérios nacionais

Grafite no Jacarezinho, no Rio, onde houve a ação policial mais letal do Rio, com 28 mortos - Lenon Lins (@lenon.há)
Grafite no Jacarezinho, no Rio, onde houve a ação policial mais letal do Rio, com 28 mortos Imagem: Lenon Lins (@lenon.há)

Bruna Barbosa

Colaboração para o UOL, em Cuiabá*

15/07/2021 10h00Atualizada em 15/07/2021 12h33

Distorções e subnotificações provocaram queda nos crimes de injúria racial e racismo registrados entre 2019 e 2020 no Brasil.

De acordo com o Anuário da Segurança Pública, divulgado hoje, oito estados não enviaram dados de algum destes dois tipos nesse período.

Acre, Espírito Santo, Maranhão, Piauí, Pernambuco, Rio Grande do Norte, São Paulo e Tocantins aparecem sem dados disponíveis para injúria racial ou para racismo.

Pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, responsável pelo anuário, Dennis Pacheco critica a falta de critério para o registro como justificativa e vê como distante da realidade não ter havido nenhum caso em algum estado, como Alagoas.

Ele usa como exemplo o estado de São Paulo, onde foram registrados 1.722 casos de injúria racial, mas não há notificações de racismo em 2020.

"Existe uma vasta literatura dando conta do fenômeno da subnotificação de casos de racismo no Brasil. É extremamente comum que vítimas sejam desencorajadas a prosseguir com as denúncias nas delegacias e, quando conseguem efetivá-las, tenham suas ocorrências tipificadas não como racismo, mas como injúria racial, injúria simples, lesão corporal dolosa etc.", explica.

Com isso, ressalta o pesquisador, se abre um abismo entre as estatísticas e a realidade dos crimes de ódio.

Segundo os dados do Anuário da Segurança Pública, foram contabilizados 10.291 casos de injúria racial e apenas 2.364 ocorrências de racismo.

Registros de injuria racial e rascimo no Brasil -  -

Cofundador da Uneafro Brasil, professor de história e integrante da Coalizão Negra por Direitos, Douglas Belchior afirma que a legislação brasileira é atrasada na discussão acerca da injúria racial.

"Injúria racial é racismo, logo deve ser tratado como tal. De acordo como consta na lei. As pessoas que cometem racismo não são responsabilizadas porque é tratado como injúria, que tem uma pena mais branda", diz Belchior.

A pena para injúria racial vai de um a três anos de prisão, mais multa, enquanto a de racismo pode chegar a cinco anos.

Líderes de denúncias ficam no Sul do país

De acordo com o anuário, Santa Catarina lidera o ranking de notificações de injúria racial, com 2.865 registros em 2020. No mesmo ano, foram 101 casos de racismo. Em 2019, houve apenas 177 denúncias de injúria racial.

O Rio Grande do Sul teve o maior registro de casos de racismo do Brasil em 2020, com 1.237. De acordo com a Secretaria de Segurança Pública do estado, a justificativa está na existência de uma Delegacia Especializada no Combate à Intolerância.

"Dados sempre existem em um contexto, e às vezes nos informam problemáticas que estão muito além do que os dados se propõem a informar", diz Dennis Pacheco sobre a falta de denúncias em alguns estados.

Subnotificação e falta de oportunidades

Cleyton - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Cleyton da Silva de Freitas Lima, morto na ação policial no Jacarezinho, no Rio
Imagem: Arquivo pessoal
Números que não são fiéis à realidade do racismo no Brasil podem impactar negativamente na capacidade de criação de políticas públicas, já que o problema acaba não sendo identificado formalmente pelos gestores.

As polícias não reconhecem crimes de ódio, não acham que enfrentá-los seja trabalho da polícia e parte dos seus efetivos naturaliza sua incorporação enquanto discurso ideológico. Por conta dessa falta de vontade política de produzir e sistematizar dados de injúria e racismo, esses dados acabam ficando defasados.
Dennis Pacheco, pesquisador

Vladia da Silva, 45, sente na pele a consequência da falta de políticas públicas efetivas. O filho dela, Cleyton da Silva de Freitas Lima, 26, foi uma das vítimas da chacina do Jacarezinho, no Rio, em maio deste ano. Cleyton foi dos 27 civis mortos na favela pela Polícia Civil.

Ao UOL, Vladia lamenta a falta de oportunidades para o filho. O único emprego que ele conseguiu foi na adolescência, em uma lanchonete de uma rede de fast food.

Diz que ele sonhava em comprar uma casa própria e montar o próprio negócio.

"Mesmo que estivesse envolvido [com tráfico de drogas], ele tinha direito à defesa. Não estava com refém, não estava armado. Se ele foi baleado na perna, por que atiraram na testa? Por que dois tiros no peito?", lembra a mãe

Os últimos minutos de vida dele foram horríveis. Não gosto nem de pensar.
Vladia da Silva, mãe de jovem morto no Jacarezinho

Quando vivo, o filho já havia relatado a Vladia abordagens racistas que havia sofrido. Uma vez, na praia, estava com cinco amigos brancos e não entendia o motivo de ter sido o único revistado.

"Ele achou um absurdo. Ele tinha até medo de ficar em casa quando tinha operação na favela. Preferia ficar na minha e só saía quando acabava", conta.

Negra, Vladia ainda teme ser a próxima vítima. Sem condições de sair do Jacarezinho, tem medo de que seja morta como o filho em uma nova chacina.

'Estigma de favelado'

Marlon  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Marlon Araújo, morto no Jacarezinho (Rio), com a mãe, Adriana
Imagem: Arquivo pessoal
Com a voz embargada, Adriana Santana de Araújo, 46, sobrevive à base de medicamentos depois do que chama de "noite de terror" no Jacarezinho. Ela se mudou de lá, com medo de também ser morta.

Apesar da pele clara, diz que o filho não escapou do "estigma de favelado". Ele não tinha passagens criminais, mas foi morto a tiros pela Polícia Civil.

"Não tinha pele escura, mas sofreu com racismo. Todo favelado sofre. Quem mora na Barra, quem tem condições financeiras melhores, tem que saber que quem limpa privada de quem tem dinheiro somos nós pobres, negras, faveladas. Recebi mensagem falando que era mãe de bandido, que tinha que morrer junto", diz.

Quando tinha 12 anos, Marlon foi uma das crianças que viajou à África do Sul para entrar em campo com a bandeira do Brasil. Adriana lamenta que o filho tenha sido morto pelo mesmo país que representou outrora.

"Ele era muito inteligente, tinha planos e sonhos. Só serviu para representar a bandeira do Brasil, mas depois esse Estado nojento matou meu filho", diz a dona de casa.

Sobre a falta de políticas públicas para a população negra no Brasil, Belchior ressalta que o Estado responde com repressão quando deveria responder com oferta de empregos. A situação ficou ainda mais evidente durante a pandemia.

"Estamos numa situação de agravamento da crise social, um contingente imenso de pessoas, que já viviam no trabalho informal, ficaram sem trabalho, sem acesso a emprego e renda. Aumento da pobreza e volta da fome. Não tem emprego, não tem nem 'bico' mais", diz Belchior.

* Colaborou Herculano Barreto Filho, do UOL