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Guerra de facções e liberação de armas explicam alta de mortes, diz fórum

Conjunto de armas apreendidas em Americana, no interior de SP, no ano passado; equipamentos comprados legalmente podem ir para o crime, alertam pesquisadores - Divulgação/Deic
Conjunto de armas apreendidas em Americana, no interior de SP, no ano passado; equipamentos comprados legalmente podem ir para o crime, alertam pesquisadores Imagem: Divulgação/Deic

Herculano Barreto Filho

Do UOL, em São Paulo*

15/07/2021 10h00

Os números de mortes violentas intencionais voltaram a aumentar no país em 2020, revertendo a tendência de queda dos dois anos anteriores —mesmo em meio às restrições impostas pela pandemia do coronavírus.

Levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que divulgou hoje (15) os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, aponta alta de 4% de casos no ano passado, na comparação com 2019. Pesquisadores do estudo ouvidos pelo UOL relacionam o aumento nos números à desarticulação no combate ao crime organizado na Amazônia, ao incentivo de uma política armamentista e à identificação das polícias com o bolsonarismo.

Procurado pelo UOL, o governo federal ainda não se manifestou. Caso o posicionamento seja enviado, ele será incluído nesta reportagem.

Em números absolutos, o anuário registrou mais de 50 mil mortes no país, incluindo casos de homicídio doloso, latrocínio (roubo seguido de morte), lesão corporal seguida de morte e assassinatos em ações da polícia —um aumento de 2.291 assassinatos em comparação com 2019. Os homicídios dolosos concentram 83% dos casos.

Entre as vítimas das mortes violentas:

  • Mais de 89% eram homens;
  • A maioria era jovem --entre 18 e 24 anos, principalmente;
  • E negra (eram 64,3% nos casos de latrocínio; 75,3% das lesões corporais seguidas de morte; 75,8% entre os homicídios dolosos, e 78,9% nas intervenções policiais).

O instrumento empregado, em 76% dos homicídios dolosos, foi arma de fogo, seguido de arma branca (18,5%) e agressão/asfixia (2%).

Anuário Brasileiro de Segurança Pública -  -

Queda no Rio, maior alta no Ceará

Nem a queda de 18,4% na taxa de homicídios no Rio de Janeiro impediu a retomada da alta nos números do país —a redução de mortes em solo fluminense está relacionada à ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 365 do STF (Supremo Tribunal Federal), que proibiu operações policiais nas favelas do estado na pandemia.

Por trás dos números registrados no anuário, estão assassinatos que causaram comoção no país, como o de João Pedro, adolescente de 14 anos baleado em uma operação policial em São Gonçalo, região metropolitana do Rio; de João Alberto Silveira Freitas, homem negro espancado por seguranças do Carrefour em Porto Alegre (RS); e da família morta e colocada no porta-malas de um carro, que em seguida foi carbonizado em São Bernardo do Campo, no ABC paulista.

Jardeson Rodrigo Rodrigues Martins, morto pela polícia do Ceará - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Jardeson Rodrigo Rodrigues Martins, morto pela polícia do Ceará
Imagem: Arquivo Pessoal

Com alta de 75% na comparação entre 2020 e o ano anterior, o Ceará foi o estado que apresentou o maior crescimento de mortes violentas intencionais, segundo o estudo. A taxa por 100 mil habitantes é de 45,2 —a maior do país.

Casos como o de Jardeson Rodrigues Martins, morto pela PM-CE (Polícia Militar do Ceará) em fevereiro de 2020, fazem parte de uma estatística que inclui 4.155 assassinatos. A corporação alegou na época que o jovem estava com um revólver quando foi baleado. A versão foi contestada pela família, que alegou que Jardeson tinha saído de casa para comprar um lanche quando foi morto.

"A Polícia Civil está investigando. Queria que eles me dessem uma resposta. Eu sigo com essa dor que nunca vai passar. É uma ferida que nunca vai cicatrizar", desabafa Gilson dos Santos, pai do jovem morto.

Na lista das dez cidades com mais mortes violentas no país, oito estão em regiões metropolitanas de capitais do Nordeste —sendo três na Grande Fortaleza. O Ceará enfrenta guerra entre três facções criminosas há algum tempo.

PCC na Amazônia, guerra entre facções e governo Bolsonaro

Pesquisadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública responsáveis pelo estudo relacionam a alta das mortes violentas à expansão das facções criminosas do país para o Norte e o Nordeste em meio à criação de novas rotas do tráfico internacional de drogas para a região amazônica.

De acordo com os pesquisadores, trechos antes restritos aos garimpos ilegais e áreas de grilagem passaram a ser usados por criminosos ligados ao PCC (Primeiro Comando da Capital) e ao Comando Vermelho (CV), que tiraram proveito do afrouxamento da fiscalização nessas regiões no governo de Jair Bolsonaro (sem partido).

O governo Bolsonaro radicalizou a politização entre as instituições. O Salles [Ricardo Salles, exonerado do cargo de ministro do Meio Ambiente em junho] fez uma política leniente em relação à madeira ilegal e não regulamentou terras. As redes de narcotráfico tiraram proveito disso."
Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

"As facções se beneficiaram do que a gente chama de brecha entre União, governos estaduais e prefeituras, ocupando o território sem enfrentar resistência dos órgãos de fiscalização. Não estamos perdendo a soberania nacional na Amazônia para outros países ou organizações internacionais. Estamos perdendo o território para o crime organizado", complementa. "Há disputa entre facções e mais mortes. O que aconteceu no Rio e em São Paulo agora acontece na região amazônica. Quem controla as ruas e até a selva é o crime organizado."

Lima entende que o "alinhamento ideológico" com o presidente Bolsonaro fez com que as polícias deixassem de aperfeiçoar as políticas de segurança pública.

A defesa da política armamentista também teve impacto no aumento de mortes, sustentam os pesquisadores. Em 2020, o país contabilizou mais de 1,2 milhão de armas com registro de posse ativos —o dobro em comparação com 2017.

"O governo faz o discurso armamentista, na contramão do resto do mundo. Essas armas são compradas legalmente pelo tal 'cidadão de bem' e migram para o crime, já que são roubadas e vendidas. Também há aumento da violência interpessoal, da violência doméstica e dos suicídios", analisa a advogada Isabel Figueiredo, pesquisadora e integrante do Fórum.

municípios com mais mortes por 100 mil habitantes -  -

Disputa de facções na rota do tráfico

Aiala Couto, membro do Fórum e professor da Universidade do Estado do Pará, diz que as principais facções do país ocuparam municípios do interior do Norte e Nordeste, onde há menor policiamento e mais possibilidade de estabelecer domínio territorial sem o enfrentamento das forças de segurança.

Além disso, há disputas entre as facções por rotas alternativas para o tráfico. Um cenário que explica a presença de cidades de pequeno porte no topo do ranking das mortes violentas intencionais por 100 mil habitantes. "A droga não segue sempre a mesma rota. As facções fazem monitoramento e se estabelecem em cidades pequenas, que se tornaram estratégicas. Aí que começam os conflitos entre as facções rivais", explica.

A política bolsonarista facilitou as ações do crime organizado. Como foi aberta a porteira para o garimpo ilegal, o PCC e o CV mergulharam de cabeça nisso. Há agentes ligados ao PCC que compram terras na Amazônia e criam empresas na região."
Aiala Couto, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

*Com Carlos Madeiro, colaboração para o UOL, em Maceió