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Em "limbo" jurídico, funcionários do Itamaraty no exterior sofrem com falta de direitos trabalhistas

Funcionários do Itamaraty no exterior escreveram carta à presidente Dilma Rousseff - Reprodução
Funcionários do Itamaraty no exterior escreveram carta à presidente Dilma Rousseff Imagem: Reprodução

Marina Motomura

Do UOL, em Brasília

27/07/2012 06h00

Assistentes, secretários, analistas, professores, tradutores, copeiros e outros funcionários do Ministério das Relações Exteriores (MRE) no exterior vivem em um limbo jurídico que os segrega dos servidores públicos do ministério – assistentes de chancelaria, diplomatas e oficiais. São cerca de 3.000 funcionários contratados localmente pelo Itamaraty no exterior, algo em torno de 70% da força de trabalho total do ministério no exterior, segundo cálculos da Aflex (Associação dos Funcionários Locais do MRE no Mundo), associação fundada em 2011 para representar a categoria.

Por não serem funcionários públicos, os servidores locais do Itamaraty vivem sob incerteza jurídica, ora sendo regidos pelas leis locais do país onde servem ora pelas leis trabalhistas brasileiras. “A situação jurídica dos auxiliares locais que desenvolvem atividades em representações diplomáticas é totalmente insegura”, diz texto do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre uma das ações trabalhistas movidas contra o MRE.

"Até dezembro de 1990, quando da publicação da lei nº. 8.112/90, os contratados locais eram regidos pela legislação trabalhista brasileira. Todos os contratados locais que prestaram serviços para o Brasil antes da publicação da lei nº. 8.112/90 eram regidos pela CLT e deveriam ter sido enquadrados nos termos do artigo 243 da supracitada lei", diz Lilian Maia, advogada da Aflex. "Eu tenho vários clientes que já movem ações contra o MRE para enquadramento [como servidores públicos federais], sendo que existem muitas outras pessoas que movem processos com outros advogados. Isto sem contar aquelas pessoas que têm medo de litigar contra o MRE e serem demitidos, já que atualmente não têm qualquer legislação reconhecida pelo MRE que lhe garantam seus direitos", afirma Maia.

A decisão do STJ se refere à funcionária Yara Barreto dos Santos, que trabalha na embaixada do Brasil em Londres desde 1982, quando foi contratada, segundo ela, pelo regime CLT brasileiro, como auxiliar administrativa. A partir de 2005, Yara começou a sofrer de problemas de saúde e precisou se afastar do trabalho diversas vezes para se tratar. Mas o afastamento da funcionária não foi aceito pela embaixada, que entrou com processo administrativo contra ela na Justiça britânica e ameaça demiti-la.

E o caso não é o único. Segundo a Aflex, as situações mais graves ocorrem em países onde o direito difere do sistema utilizado no Brasil (sistema romano-germânico, onde prevalece o caráter escrito do direito). “Em países como Estados Unidos, Reino Unido e Canadá, pratica-se a common law (direito comum), onde normas gerais são inferidas a partir de decisões judiciais proferidas a respeitos de casos individuais. Nesses países, coincidentemente, localiza-se o maior número de missões diplomáticas brasileiras. O MRE não reconhece o direito sem que este esteja determinado em lei e ignora as práticas locais”, afirma Antônio Carlos Di Gaspero, presidente da Aflex, em entrevista por e-mail ao UOL.

"O MRE entende que tais trabalhadores não teriam direito ao enquadramento e se recusa terminantemente em fazê-lo, apenas o faz por determinação judicial. Eles alegam que tais trabalhadores eram contratados temporários e que por isso não teriam sido abarcados pelas leis. Mas tais 'contratos temporários'duram mais de vinte e cinco ou trinta anos", aponta a advogada.

Nos Estados Unidos, por exemplo, o regime salarial dos servidores do MRE é objeto de controvérsia. Lá, o padrão nacional é o pagamento de 52 semanas-salário, mas os funcionários contratados localmente recebem somente 48 semanas-salário, o equivalente a 12 meses de salário, diminuindo os rendimentos. “O MRE diz aplicar a legislação local em seus contratos de trabalho. Porém, analisando o exemplo dos Estados Unidos, observa-se que cada uma das 14 missões brasileiras no país tem seu próprio e distinto modelo de contrato de trabalho, com diferentes direitos e deveres”, critica a Aflex.

Benefícios

Outra queixa da entidade são os benefícios concedidos aos funcionários públicos, que não são repassados aos funcionários locais. Segundo a associação, os funcionários recebem verba de representação, auxílio-moradia (aproximadamente 80% do valor do aluguel), auxílio-família (10% para cada membro que resida com o servidor), e outras ajudas de custo, como pagamento de cursos de língua – nada disso é oferecido aos servidores locais. “Os funcionários locais deixam de usufruir de adicional de férias, 13º salário e adicional de remuneração (hora extra, hora noturna, periculosidade). Não há recolhimento do FGTS, o que impossibilita pagamento de multa de 40% sobre seu saldo em demissões por iniciativa do empregador”, diz a Aflex.

"O MRE deve obedecer à lei local (dos países onde os postos são sediados) ou à lei brasileira, pois atualmente ainda existem contratados locais que têm mais de trinta e cinco anos de serviços prestados ao MRE e não têm condições de se aposentarem porque não têm o recolhimento de INSS ou da previdência do país, onde é sede a repartição, regularizada", afirma a advogada Lilian Maia.

Carta para Dilma

O descontentamento da Aflex ganhou holofotes nesta semana, quando a associação decidiu protocolar uma carta à presidente Dilma Rousseff, que visitou Londres para a abertura das Olimpíadas. A carta, que se propagou pela internet, critica a falta de direitos trabalhistas e afirma que, quando reclamam de suas condições de trabalho, muitas vezes os funcionários são ameaçados de demissão. O documento denuncia ainda “mordomias” do corpo diplomático no exterior, como auxílio-moradia de até US$ 22 mil mensais para os embaixadores, o que contrasta com os salários de US$ 2.200 mensais dos funcionários locais, segundo a entidade.

“Acreditamos que, levando em conta o histórico da presidente Dilma, poderemos sensibilizá-la a agir em nosso favor”, diz Antônio Carlos Di Gaspero. “O objetivo da Aflex não é de tornar seus associados funcionários públicos brasileiros. O que almejamos ultimamente é o reconhecimento da classe, a estipulação de plano de carreira, e a determinação de regulamentações mínimas a serem cumpridas pelo MRE. Nitidamente, as diferenças praticadas ultrapassam o limite do aceitável dentro da hierarquia das missões estrangeiras brasileiras no exterior”, argumenta.

Questionado sobre a possibilidade de greve diante do não atendimento das reivindicações, Di Gaspero afirma que “paralisações não estão descartadas”, mas que o instrumento “é utilizado somente em última instância”.

Procurado pela reportagem do UOL, o Itamaraty disse que não poderia responder ao conteúdo da carta, pois a mesma foi endereçada à presidente Dilma Rousseff. O Sinditamaraty (Sindicato Nacional dos Servidores do Ministério das Relações Exteriores) informou, por meio de nota, que “os contratados locais que trabalham nas repartições diplomáticas e consulares do Brasil no exterior não são representados pelo SindItamaraty”.