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Sobrevivente conta como campo de doutrinação chinês faz lavagem cerebral em muçulmanos

Omir Bekali chora ao se lembrar do estresse psicológico que passou na China - Ng Han Guan/AP
Omir Bekali chora ao se lembrar do estresse psicológico que passou na China Imagem: Ng Han Guan/AP

Gerry Shih, da Associated Press

Em Almaty (Cazaquistão)

20/05/2018 04h00

Hora a hora, dia a dia, Omir Bekali e outros detidos nos novos campos de doutrinação da China no extremo oeste do país tinham de negar suas crenças islâmicas, criticarem a si mesmos e a seus entes queridos e agradecer ao Partido Comunista do governo.

Quando Bekali, um muçulmano cazaque, se recusou a seguir as ordens, ele foi forçado a permanecer em pé voltado para uma parede por cinco horas seguidas. Uma semana depois, foi enviado para a solitária, onde foi privado de comida por 24 horas. Após 20 dias no campo fortemente guardado, ele queria se matar.

"A pressão psicológica é enorme, quando você tem que criticar a si mesmo, condenar seu crença, até mesmo seu grupo étnico", disse Bekali, que caiu em lágrimas enquanto descrevia o campo.

"Ainda penso nele toda noite, até o nascer do sol. Não consigo dormir. Os pensamentos estão comigo o tempo todo."

Omir Bekali

Desde o ano passado, as autoridades chinesas na região altamente muçulmana de Xinjiang têm detido dezenas, talvez centenas de milhares de muçulmanos chineses, até mesmo cidadãos estrangeiros, em campos de doutrinação. Essa campanha de detenção varreu Xinjiang, um território com metade da área da Índia, levando ao que uma comissão dos Estados Unidos para a China chamou no mês passado de "o maior encarceramento em massa de uma minoria no mundo atualmente".

As autoridades chinesas em grande parte evitam comentar sobre os campos, mas alguns são citados na mídia estatal como tendo dito que mudanças ideológicas são necessárias para combater o separatismo e o extremismo islâmico. Radicais muçulmanos uigures mataram centenas nos últimos anos e a China considera a região uma ameaça à paz em um país onde a maioria é da etnia chinesa han.

Entrada de mesquita, na região de Xinjiang, tem placa que diz "Ame o partido. Ame o país" - Ng Han Guan/AP - Ng Han Guan/AP
Entrada de mesquita em Xinjiang tem placa que diz "Ame o partido. Ame o país"
Imagem: Ng Han Guan/AP

O programa de internamento visa mudar o pensamento político dos detidos, apagar suas crenças islâmicas e moldar suas próprias identidades. Os campos se expandiram rapidamente ao longo do ano passado, com quase nenhum processo judicial ou papelada legal. Os detidos que criticam mais vigorosamente as pessoas e coisas que amam são recompensados e aqueles que se recusam são punidos com confinamento solitário, espancamentos e privação de alimentos.

As lembranças de Bekali, um homem corpulento e quieto de 42 anos, oferecem o que parece ser o relato mais detalhado já fornecido da vida dentro dos chamados campos de reeducação. A "Associated Press" também realizou entrevistas raras com três outros ex-detidos e um ex-instrutor em outros centros, que corroboraram a descrição por Bekali. A maioria falou sob a condição de anonimato, para proteção de suas famílias na China.

'Guerra Popular ao Terror'

Na manhã fria de 23 de março de 2017, Bekali dirigiu de sua casa em Almaty, Cazaquistão, até a fronteira chinesa, obteve um carimbo em seu passaporte cazaque e a cruzou para uma viagem a trabalho, desconhecendo as circunstâncias extraordinárias nas quais estava ingressando.

Bekali nasceu na China em 1976 de um casal cazaque e uigur, se mudou para o Cazaquistão em 2006 e obteve cidadania três anos depois. Ele estava fora da China, em 2016, quando as autoridades promoveram uma forte escalada da "Guerra Popular ao Terror" para eliminar o que o governo chama de extremismo religioso e separatismo em Xinjiang, um grande território chinês que faz fronteira com o Paquistão e vários Estados da Ásia Central, incluindo o Cazaquistão.

A Xinjiang para a qual retornou estava irreconhecível. Uma vigilância abrangente, apoiada em dados, monitora os habitantes em uma região com cerca de 12 milhões de muçulmanos, incluindo pessoas de etnia uigur e cazaque. Ver um site estrangeiro na internet, receber telefonemas de parentes no exterior, rezar regularmente ou deixar a barba crescer pode resultar em uma detenção em um campo de doutrinação política, na prisão ou ambos.

Bekali não sabia de nada disso quando visitou seus pais em 25 de março.

No dia seguinte, cinco policiais armados apareceram à porta dos pais de Bekali e o levaram. Eles disseram que havia um mandado de prisão para ele em Karamay, uma cidade petrolífera na fronteira onde morou uma década atrás. Ele não podia ligar para os pais e nem para um advogado, acrescentaram os policiais, porque o caso dele era "especial".

Lá, ele foi amarrado em uma cadeira pelos pulsos e tornozelos. Também foi pendurado pelos pulsos contra uma parede barrada, alto o suficiente para que sentisse uma pressão excruciante em seu ombro a menos que se apoiasse nas pontas de seus pés nus. Eles o interrogaram sobre seu trabalho em uma agência de turismo que convida os chineses a pedirem vistos de turista cazaques, que alegavam ser uma forma de ajudar os muçulmanos chineses a fugirem.

"Não cometi nenhum desses crimes!" gritava Bekali.

Em meados de julho, três meses após sua prisão, Bekali recebeu a visita de diplomatas cazaques. A detenção em massa pela China de pessoas de etnia cazaque, a até mesmo de cidadãos cazaques, começava a agitar o país centro-asiático de 18 milhões de habitantes. As autoridades cazaques disseram que a China deteve 10 cidadãos cazaques e centenas de chineses de etnia cazaque em Xinjiang ao longo do ano passado, apesar de terem sido soltos no final de abril após uma visita de um vice-primeiro-ministro do Cazaquistão.

Quatro meses após a visita, Bekali foi retirado de sua cela e lhe foi entregue um documento de soltura.

Mas ainda não estava livre.

"Nós sabemos mais"

Bekali foi levado da prisão para uma instalação cercada nos subúrbios ao norte de Karamay, onde mais de 1.000 detidos eram mantidos em três prédios para recebimento de doutrinação política, ele disse.

Os detidos eram despertados antes do amanhecer, cantavam o hino nacional chinês e hasteavam a bandeira chinesa às 7h30. Então eram reunidos em grandes salas de aula para aprender "canções vermelhas", como "Sem o Partido Comunista, não há a Nova China", e estudar a língua e a história chinesa. Eles eram ensinados que os povos nativos pastores de ovelhas centro-asiáticos de Xinjiang eram atrasados e oprimidos pela escravidão antes de serem "libertados" pelo Partido Comunista nos anos 50.

Antes das refeições de sopa de legumes e pão, os presos eram ordenados a cantar: "Obrigado Partido! Obrigado Pátria! Obrigado presidente Xi!"

Bekali e outros ex-detidos disseram que as piores partes do programa de doutrinação eram a repetição forçada e as autocríticas. Apesar dos alunos não entenderem grande parte do que era ensinado e o material beirar o absurdo para eles, eles eram obrigados a internalizá-lo por meio da repetição em sessões que duravam duas horas ou mais.

"Nós nos oporemos ao extremismo, nos oporemos ao separatismo, nos oporemos ao terrorismo", eles cantavam de novo e de novo. Quase todo dia, os alunos recebiam palestrantes convidados da polícia local, judiciário e outras divisões do governo que falavam a respeito dos riscos do separatismo e extremismo.

Omir Bekali demonstra como era preso pelos braços em centro de detenção chinês  - Ng Han Guan/AP - Ng Han Guan/AP
Omir Bekali demonstra como era preso pelos braços em centro de detenção chinês
Imagem: Ng Han Guan/AP

Em sessões de quatro horas, os instrutores ensinavam sobre os perigos do Islã e enchiam os detidos de perguntas que precisavam responder corretamente, caso contrário eram colocados de pé contra a parede por horas seguidas.

"Você obedece a lei chinesa ou a Sharia (lei islâmica)?" perguntavam os instrutores. "Você entende por que a religião é perigosa?"

Aqueles que não obedeciam, chegavam atrasado à aula ou se envolviam em brigas eram colocados por 12 horas em um colete de ferro e tinham seus movimentos limitados, ele disse. Aqueles que ainda desobedeciam eram amarrados a uma cadeira por 24 horas. Como uma das formas de punição, ele disse, os instrutores enfiavam a cabeça do detido em um balde de água e gelo.

Toda noite em que ia dormir em uma sala com 80 outras pessoas, ele disse, a última coisa que ouvia era o som de miséria.

"Eu ouvia pessoas chorando toda noite. Foi a experiência mais triste da minha vida."

Omir Bekali

Após 20 dias, Bekali pensou em se suicidar. Vários dias depois, devido à sua intransigência e recusa em falar mandarim, Bekali não foi mais autorizado a ir para o pátio. Em vez disso, foi enviado para um nível mais alto da administração, onde passava 24 horas por dia em uma sala com 8 pessoas.

Uma semana depois, ele foi enviado para sua primeira permanência na solitária. Ele via uma autoridade do Judiciário local caminhando pelo prédio para inspeção e gritando a plenos pulmões. Ele pensava que até mesmo sua antiga prisão, com todo o abuso que sofreu, era melhor que aquilo.

"Me levem lá para trás e me matem ou me mandem de volta para a prisão", ele gritava. "Não posso mais ficar aqui."

Ele foi levado de volta para a solitária. Isso durou 24 horas, acabando no fim da tarde de 24 de novembro.

Foi quando Bekali foi solto, de forma tão repentina quanto como foi detido oito meses antes.