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Projeto que descriminaliza aborto cria racha até entre médicos na Argentina

Médica protesta contra mudanças na lei do aborto em Buenos Aires - Jorge Saenz/AP
Médica protesta contra mudanças na lei do aborto em Buenos Aires Imagem: Jorge Saenz/AP

Da Associated Press

01/08/2018 19h52

A campanha para legalizar (ou não) o aborto está dividindo os argentinos, inclusive os profissionais que seriam responsáveis por realizar as operações.

Nesta quarta-feira (1º), centenas de médicos foram às ruas protestar contra o aborto, às vésperas da votação de um projeto de lei no Senado, a acontecer no dia 8. Alguns dos manifestantes carregavam bonecas em forma de feto, outros agitavam cartazes com os dizeres: "Eu sou médico, não assassino". Em uma manifestação recente, eles colocaram seus jalecos brancos no chão em frente ao palácio presidencial.

O grupo ativista Médicos pela Vida afirma ter cerca de mil membros, apenas uma pequena fração dos médicos do país. Mesmo assim, os protestos realizados por eles alimentam um debate na profissão sobre a medida de legalizar abortos eletivos nas primeiras 14 semanas de gravidez.

Líderes da prestigiosa Sociedade Médica da Argentina endossaram o projeto de lei, que já passou pela Câmara de Deputados. Eles disseram que a mudança ajudaria a reduzir mortes entre as cerca de 400 mil e 500 mil mulheres que fazem abortos clandestinos a cada ano.

Mas a igualmente respeitosa Academia de Medicina rejeita de forma veemente a nova legislação. A instituição divulgou um comunicado afirmando que a vida começa na concepção e que "destruir um embrião humano significa impedir um nascimento". "Nada de bom pode vir quando a sociedade escolhe a morte como uma solução", concluiu a nota.

Uma associação de médicos especializados em controle de natalidade emitiu uma forte declaração em favor da lei proposta. Autoridades em cerca de 300 hospitais privados e instalações médicas denunciaram isso.

18.jul.2018 - Ernesto Beruti, chefe da obstetrícia do hospital universitário Austral, fala com pacientes durante consulta, em Pilar, na Argentina - Jorge Saenz/AP - Jorge Saenz/AP
Ernesto Beruti, chefe da obstetrícia do hospital universitário Austral
Imagem: Jorge Saenz/AP

"A defesa da vida está no alicerce da nossa instituição", disse Ernesto Beruti, chefe de obstetrícia do Hospital Universitário Austral, ligado ao conservador movimento católico Opus Dei. “Nós vemos cada vez mais médicos juntando-se aos protestos."

Hoje, a Argentina permite o aborto apenas em casos de estupro ou de riscos para a saúde da mulher. Mas os defensores da nova medida afirmam que os médicos e juízes frequentemente continuam a impedir os abortos legais. Abortos ilegais podem condenar a quatro anos de prisão para a mulher e para o médico.

O novo projeto de lei foi aprovado de maneira apertada na Câmara dos Deputados em 14 de junho, depois de uma longa campanha de centenas de grupos feministas e de direitos humanos. Seu avanço parece ter angariado opositores, religiosos ou não, que se mobilizam para organizar protestos públicos antes da votação no Senado. O presidente argentino, Mauricio Macri, já disse que assinará a medida se aprovada, apesar de se opor ao aborto.

Neste ano, o papa Francisco chamou o aborto de "luva branca", equivalente ao programa de eugenia da era nazista, e pediu às famílias que "aceitassem as crianças que Deus lhes dá".

Mas as pesquisas indicam que a maioria dos argentinos é a favor de uma legalização mais ampla do aborto, que também conta com o apoio de grupos locais e internacionais de direitos humanos, incluindo a Human Rights Watch e a Anistia Internacional.

"A descriminalização reduz a mortalidade materna, complicações sérias e o número total de abortos", disse recentemente o ministro da Saúde, Adolfo Rubinstein. "Além de todos os dilemas morais, o aborto existe e é um problema que devemos enfrentar."

Os médicos críticos da medida, no entanto, queixam-se da mecânica da lei proposta, bem como das questões de vida e morte.

Muitos hospitais privados, como a Austral, estão incomodados com o fato de a lei permitir que apenas médicos individuais optem por não realizar abortos, e não instituições como um todo.

A Federação de Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia da Argentina emitiu uma declaração reclamando que não havia sido consultada sobre a medida e expressou preocupação de que os médicos que se recusam a realizar abortos por motivos morais possam sofrer discriminação profissional. Críticos observam que os profissionais que se oporem teriam que se registrar e que isso poderia funcionar como uma espécie de “lista negra” para os hospitais, para evitar a contratação deles.

15.jul.2018 - Médicos protestam contra a legalização do aborto, em frete à Casa Rosada, em Buenos Aires - Jorge Saenz/AP - Jorge Saenz/AP
Médicos protestam contra a legalização do aborto, em frente à Casa Rosada
Imagem: Jorge Saenz/AP

Alguns se preocupam com a exigência da lei de que as mulheres realizem um aborto dentro de cinco dias depois de solicitarem o procedimento. Os críticos dizem que, por causa dessa medida, médicos poderiam ser processados por se recusarem a realizar um aborto por razões de segurança médica, e não por motivos morais, ou quando não é possível encontrar um médico disposto a realizar o procedimento no curto espaço de tempo.

"Os médicos não podem trabalhar sob a ameaça de prisão", disse Maria de los Angeles Carmona, chefe de ginecologia do hospital estatal Eva Perón.

Os oponentes também alertam que a lei poderia abrir o caminho para abortos generalizados no final do período, porque a norma abre mão do limite de 14 semanas em casos de estupro ou quando a saúde de uma mulher está em risco. Eles dizem que as mulheres podem argumentar que enfrentam danos psicológicos ou sociais devido a uma gravidez.

Alguns afirmam que irão desafiar a lei no tribunal se ela for aprovada.

“Até onde estamos dispostos a ir? À cadeia", disse Beruti. “Mesmo que a lei seja aprovada, não vou eliminar a vida de um ser humano. O direito mais importante é o direito de viver."