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Barato legal: bem-vindo à revolução da maconha

A polícia de Berlim encontrou em maio passado 700 pés de maconha plantados no meio de uma praça da cidade, que fica embaixo da estação de metrô Kottbusser Tor, região com uma das maiores concentrações de bares e clubes da capital alemã. Segundo a polícia, um funcionário da companhia de saneamento "estranhou" a forma das plantas, que cresciam junto a ervas daninhas. Ainda não se sabe que tipo de maconha estava plantada - Reprodução/Twitter
A polícia de Berlim encontrou em maio passado 700 pés de maconha plantados no meio de uma praça da cidade, que fica embaixo da estação de metrô Kottbusser Tor, região com uma das maiores concentrações de bares e clubes da capital alemã. Segundo a polícia, um funcionário da companhia de saneamento "estranhou" a forma das plantas, que cresciam junto a ervas daninhas. Ainda não se sabe que tipo de maconha estava plantada Imagem: Reprodução/Twitter

Marco Evers e Laura Höflinger

17/06/2015 06h01

A srta. Zeng fala baixinho, quase sussurrando, com forte sotaque chinês. Há quanto tempo você tem dificuldade para dormir, ela pergunta ao seu cliente.

Talvez algumas semanas, ele responde. A srta. Zeng pergunta se ele sente que a maconha o ajuda a adormecer. "Com certeza", ele responde. A profissional não-médica então lhe dá o que ela dá a todos seus pacientes, independente de seus sintomas: uma receita para maconha medicinal.

Uma receita emitida pela srta. Zeng permite ao paciente obter maconha medicinal em qualquer forma na Canna Clinic. Atrás do balcão estão jarros cheios de pacotes verde-escuro de vários tipos de maconha, de "B52" a "Afghan Kush" e "BC Bud". Biscoitos de maconha também estão em exposição, assim como mel com maconha. O especial do dia é cigarros de maconha pré-enrolados e chocolates de maconha por US$ 2 (cerca de R$ 6) cada.

Aqui em Vancouver, Colúmbia Britânica (Canadá), qualquer um que apresentar uma receita pseudo-médica pode comprar quanta maconha quiser. A cidade conta com uma população de cerca de 600 mil habitantes e pelo menos 80 lojas especializadas em maconha, apesar dela ser ilegal no Canadá.

Desde que as lojas não vendam a droga para menores de idade, elas não precisam temer recriminação por parte da polícia. A polícia responde à Câmara Municipal, que em um espírito da rebelião, decidiu que os policiais de Vancouver tinham coisas melhores a fazer do que reprimir os usuários de maconha –-como combater a heroína ou anfetaminas.

A fronteira com os Estados Unidos fica ao sul da cidade. Qualquer um dirigindo de Vancouver a Seattle, uma distância de 230 quilômetros, logo perceberá que está testemunhando uma mudança histórica. A era da proibição global da maconha está chegando ao fim. A estrada para Seattle é repleta de lojas como a Healthy Living Center e a Green Theory (apontada como a "melhor loja de maconha" pela revista "Dope"). Atualmente, a própria Seattle conta com mais lojas de maconha do que McDonalds. Na Uncle Ike's PotShop, localizada ao lado de uma igreja, cerca de uma dúzia de atendentes amistosos se acotovelam para atender aos clientes. A loja vende uma série de produtos de maconha para fumar, comer e beber, assim como folhas desde altamente intoxicantes a apenas suaves, de pomadas a óleos de massagem de maconha.

A polícia só intervém se alguém acender um baseado em público. Desde 8 de julho de 2014, adultos com mais de 21 anos no Estado americano de Washington estão legalmente autorizados a usar maconha de modo privado. O mesmo vale para o Colorado, Alasca e Washington D.C. Uma lei semelhante deverá entrar em vigor em breve no Oregon e outra provavelmente será apresentada na Califórnia no ano que vem.

Esses desdobramentos parecem surpreendentes, dado que os Estados Unidos já declararam uma "guerra às drogas". Eles agora estão à frente na liberalização da maconha –-sua terceira substância mais viciante, depois do álcool e do tabaco. Pela primeira vez, a maioria da população agora acredita que ela deve ser legalizada. Muitos esperam que o país como um todo seguirá nessa direção nos próximos cinco anos.

A situação na Alemanha

O que está acontecendo é uma revolução, uma que provavelmente terá repercussões por todo o mundo. Inclusive na Alemanha, onde o debate sobre reconsiderar a política sobre drogas ainda está em sua infância.

Uma pesquisa da "Spiegel" mostra que, por ora, a maioria dos alemães (59%) deseja que a maconha permaneça ilegal. Todavia, o apoio à manutenção da proibição está diminuindo, especialmente entre os jovens e as pessoas de alta escolaridade.

O Partido Verde, o Partido de Esquerda e o liberal Partido Democrático Livre (FDP) já se manifestaram a favor da legalização. As prefeituras de Hamburgo, Colônia, Berlim e Frankfurt estão pressionando por uma legalização controlada, em uma tentativa de encolher o mercado negro em bairros problemáticos. Um crescente número de médicos, policiais e advogados também apoia a suspensão da proibição da maconha. Não por a considerarem inofensiva –-mas porque a legalização facilitaria conter os danos que causa.

Hubert Wimber se aposentou recentemente, após servir por quase 18 anos como chefe de polícia em Münster, uma cidade universitária onde o uso da maconha é disseminado. Ele está bem familiarizado com os caprichos da Lei de Narcóticos alemã. "Nós não tivemos nenhum sucesso com ela", ele diz.

Apesar da labuta diária de combate às drogas ser aliviada por um sucesso ocasional –-a limpeza de uma plantação de maconha no porão ou a prisão de um traficante-– o impacto dele é quase sempre neutralizado quase imediatamente. Um novo plantio em porão é iniciado, um novo traficante entra em atividade.

Agora que está aposentado e não precisa mais seguir as regras, Wimber deseja ajudar a iniciar uma revolução das drogas na Alemanha. Ele planeja abrir uma divisão alemã da Agentes da Lei Contra a Proibição (LEAP, na sigla em inglês), na qual ele espera atrair policiais, advogados e juízes de mentalidade semelhante como ocorreu nos Estados Unidos, onde surgiu.

A experiência profissional do grupo, espera Wimber, ajudará a estimular o debate sobre como proceder contra as drogas na Alemanha. "Os bilhões desperdiçados combatendo e penalizando o uso de drogas seriam mais bem gastos em educação e prevenção", diz Wimber. Por ora, não há apoio suficiente para sua abordagem entre os chefes de polícia alemães. "Ser racional não leva você muito longe nesta questão", ele diz.

O principal argumento do campo pró-legalização é este: dado que a proibição da maconha fracassou completamente em eliminar a droga, a limitação dos danos é a segunda melhor solução para os governos. O Estado deve regular o mercado de drogas como qualquer outro, tributar, descriminalizar seus usuários e se concentrar na saúde pública e proteção do consumidor.

Uma mudança global

Países de todo o mundo estão em processo de rever suas políticas em relação à maconha. Até o momento, o Uruguai é o único país que introduziu uma legalização geral do cultivo e venda de maconha. Espanha e Portugal, Holanda e República Tcheca introduziram amplas medidas de legalização a ponto de a suspensão da proibição estar apenas a um passo de distância.

Uma Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas para tratar do problema das drogas será realizada em abril do ano que vem. Um grande avanço pode vir a ocorrer. Uma coisa é clara: o consenso global em torno da proibição da maconha não mais existe.

O ex-secretário-geral da ONU, Kofi Annan, é um membro de um painel ilustre, que está abrindo o caminho para um repensar radical das políticas sobre drogas. A Comissão Global para Políticas sobre Drogas está disposta a acabar com a guerra contra as drogas –-que ela acredita que não pode ser vencida e que pode ter tirado mais vidas do que as próprias drogas. A comissão também deseja suspender a criminalização dos usuários de drogas, independente de usarem maconha, ecstasy ou heroína.

Annan e seus companheiros do painel –-que inclui mais de meia dúzia de ex-presidentes-– estão pedindo por uma política sobre drogas baseada na racionalidade. Julgamentos baseados em valores –-como por exemplo, "as drogas são o mal"-– devem ser removidos da equação e substituídos por fatos cientificamente sólidos. A prioridade do painel é limitar os danos causados pelas drogas e isso, ele argumenta, envolve um maior investimento pelos governos em educação, prevenção e terapia construtiva.

O painel segue o exemplo da campanha antitabaco. Nos países ricos, o número de fumantes está em declínio –-não porque são penalizados pela legislação, mas porque estão mais cientes dos riscos à saúde. Por sua vez, os governos elevaram os impostos sobre o tabaco e introduziram proibições a fumar em público.

O movimento internacional para liberalizar a política sobre drogas é movido por uma mudança dramática nas atitudes. Agora há uma aceitação social muito maior de que a maconha pode ser usada não apenas para fins recreativos, mas também que ela apresenta benefícios terapêuticos e médicos legítimos que são conhecidos há milênios. Os cientistas provaram o que curandeiros já sabiam há muito tempo: a maconha reduz a dor, relaxa os músculos, estimula o apetite, tem propriedades anti-inflamatórias e de melhora do humor.

Avanço médico

Em quantidades terapêuticas, a maconha não necessariamente induz um barato. Ela pode ajudar a reduzir a náusea em pacientes de câncer submetidos a quimioterapia; reduzir a dependência de pacientes que utilizam opiáceos para dor aguda, quando não substituí-los totalmente; o spray bucal baseado em maconha pode reduzir espasmos em portadores de esclerose múltipla, enquanto estudos clínicos estão em andamento para checar se o extrato de maconha pode reduzir o risco de ataques em crianças que sofrem de epilepsia severa. Os efeitos colaterais podem incluir aceleração do batimento cardíaco, secura na boca e torpor, mas não são piores do que os de muitos outros medicamentos aprovados.

Apesar da maconha poder ser um auxílio médico útil, quando não indispensável, para um número surpreendente de pessoas portadoras de condições crônicas, os pacientes na Alemanha que poderiam se beneficiar da maconha medicinal continuam sendo processados com zelo implacável. A maconha continua sendo ilegal, independente de quão útil possa ser para muitos indivíduos. Uma pesquisa da "Spiegel" mostra que 90% da população gostaria de ver a proibição suspensa e a maconha medicinal ser disponibilizada livremente aos pacientes. Mas isso de nada adianta.

Diagnosticado com um tumor cerebral, Robert Strauss, de Augsburg, descobriu que só podia aliviar a dor em sua espinha com maconha. Em fevereiro de 2014, a Agência Federal de Opiáceos alemã lhe concedeu uma isenção especial altamente incomum para maconha medicinal. Mas quando ele a apresentou à polícia em Augsburg, ela transformou a vida dele em um "inferno", como ele disse ao jornal "Süddeutsche Zeitung".

Ele era repetidamente parado na rua e ordenado a esvaziar seus bolsos. Certa noite em setembro, a polícia realizou uma batida em seu apartamento e apreendeu a maconha que ele estava legalmente autorizado a possuir, além de um pé de maconha em sua cozinha. Uma investigação criminal de posse ilegal e suspeita de venda de drogas foi aberta contra ele.

Ao ter a maconha negada, Strauss foi forçado a recorrer a analgésicos prescritos, mas diferente da maconha, eles o deixavam sonolento. Em consequência, ele sofreu uma queda feia da qual nunca se recuperou. Ele morreu em janeiro, aos 50 anos –-uma vítima da política antidrogas alemã.

Enquanto isso, outros países estão liderando em termos de atendimento compassivo. Em Israel, mais de 20 mil pessoas com condições crônicas são autorizadas a usar maconha medicinal. No Canadá, mais de 50 mil pessoas são autorizadas. As autoridades de saúde esperam que esse número aumente dez vezes ao longo da próxima década.

Na Califórnia, onde a maconha medicinal é legal desde 1996, ela é usada por centenas de milhares de pacientes sofrendo de câncer e depressão, por pessoas com HIV, artrite, doença de Crohn e esclerose múltipla. Prova confiável de que é eficaz é rara e baseada apenas no depoimento de médicos e pacientes, todos livres para experimentar com a dosagem.

Atualmente a Califórnia conta com mais de 1.000 dispensários. Há até mesmo serviços que entregam a maconha medicinal a domicílio. Nos Estados Unidos, 23 Estados introduziram leis facilitando para os pacientes terem acesso fácil e legal à maconha. Mais de 2 milhões de pessoas nos Estados Unidos usam a maconha para fins medicinais.

A solução mais simples

E a Alemanha? Até o momento, a Agência Federal de Opiáceos autorizou apenas 449 pacientes a usarem maconha medicinal –-um número que sugere que está sendo negada ajuda a um número chocante de pessoas. Franjo Grotenhermen, médico e presidente da Associação Internacional de Medicamentos Canabinóides (IACM, na sigla em inglês), fez as contas e calculou que até 1,6 milhão de pessoas na Alemanha poderiam se beneficiar com o uso da maconha medicinal. A recusa do governo em relaxar as regras representa o que ele chama de "fracasso imenso de longo prazo em prestar assistência".

O que é pior é que os poucos afortunados autorizados a usar a maconha enfrentam um situação kafkiana. A única fornecedora de maconha medicinal é uma empresa holandesa aprovada pelo Estado que enfrenta problemas de entrega há mais de um ano. "As entregas raramente chegam", diz Axel Junker, 62 anos, vice-porta-voz da divisão alemã da IACM.

Mesmo quando as entregas chegam, os planos de saúde geralmente se recusam a pagar pela maconha medicinal, que pode chegar a várias centenas de euros por mês.

Muitos pacientes se veem diante de um paradoxo: eles não podem pagar pelo que seu médico prescreveu, nem podem sempre comprar a maconha medicinal que precisam, mesmo quando estão autorizados a fazê-lo. Assim, não lhes resta opção a não ser cultivá-la eles mesmos ou comprá-la na rua. Ambas as opções os tornam criminosos aos olhos do governo.

Há uma solução simples –-uma que a Áustria, Holanda e Canadá já implantaram. Esses países contam com empresas de maconha medicinal aprovadas pelo Estado que disponibilizam a droga para pessoas com condições crônicas. A Alemanha até o momento se recusa a seguir o exemplo deles. Segundo um porta-voz do Ministério da Saúde, o assunto está atualmente "em discussão".

Mas não é mais apenas um raio de esperança: o ministro da Saúde alemão, Hermann Gröhe, da União Democrata Cristã, anunciou planos para melhorar o acesso à maconha ao menos para as pessoas seriamente doentes. A partir de 2016, os planos de saúde serão forçados a cobrir os custos. Mais pacientes deverão ter direito à maconha medicinal do que antes, apesar de que não caberá a médicos e pacientes decidir quem terá acesso ao quê, mas sim ao Estado.

Mas Gröhe não está lutando por uma verdadeira liberalização –-ele está mais preocupado em prevenir o abuso em vez de ajudar aqueles que estão sofrendo.