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Análise: Debate sobre o véu muçulmano nos confronta com nossas próprias inseguranças

"Islamofobia não é liberdade", diz cartaz de manifestantes em Londres - Neil Hall/Reuters
"Islamofobia não é liberdade", diz cartaz de manifestantes em Londres Imagem: Neil Hall/Reuters

Christiane Hoffmann

10/09/2016 06h00

Quando as culturas se chocam, a vestimenta feminina muitas vezes ocupa o centro do debate. Se para as mulheres ocidentais a questão é quanta pele elas devem ser autorizadas a mostrar, para as muçulmanas o foco é o quanto elas devem mostrar.

Nos arquivos iranianos, há uma coleção de fotos do final dos anos 1930 que mostram mulheres e homens em trajes europeus, e as mulheres não usam o lenço de cabeça, o chador.

As imagens são estranhamente perturbadoras: algumas mulheres olham para a câmera assustadas, enquanto outras estão com o olhar fixo no chão. São fotos de famílias aristocráticas do Irã, tiradas por ordem do xá Reza Khan no auge de sua campanha para retirar o véu das mulheres do país.

Ele queria que o Irã se tornasse uma nação moderna, voltada para o Ocidente, e via o chador como um símbolo de seu atraso. A proibição foi aplicada nas ruas de Teerã de maneira muito mais violenta do que a do burquíni nas praias francesas. Os chadors eram rasgados à luz do dia.

Naquela época, as mulheres foram despidas em nome da modernização. Nas últimas semanas, incidentes semelhantes ocorreram nas praias francesas, porque as mulheres de burquíni supostamente representavam uma ameaça ao estilo de vida moderno ocidental.

Há pouco mais de meio século, entretanto, as mulheres nas praias europeias podiam ser multadas por usar pouca roupa. Quando o biquíni chegou ao mercado, 70 anos atrás, não era menos polêmico que o burquíni. Na verdade, no início foi proibido em quase todo o mundo.

Na época, assim como hoje, o corpo feminino era um ponto focal na batalha entre tradição e modernidade. Da libertação do corpete à luta pelas calças, os debates sobre minissaias, shorts, biquínis e lenços de cabeça, a vestimenta feminina foi constantemente regulamentada, estipulada e proscrita, com homens emitindo decretos e proibições sobre o que as mulheres devem vestir.

Na Europa, a disputa tendeu a se concentrar em quanta pele as mulheres podiam mostrar; hoje, porém, é sobre quanta pele elas devem mostrar.

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Morais sociais específicas

A vestimenta, nossa segunda pele, é algo profundamente pessoal. E político. É uma expressão da identidade, uma declaração sobre o caráter e a personalidade, posição social e visão de mundo, profissão, idade e gênero. Quer uma pessoa use uma blusa leve ou um top, calças de corrida ou smoking, saltos altos, sandálias veganas ou botas de montaria, a vestimenta sempre é uma mensagem que usamos para pertencer ou nos distanciarmos, para seduzir ou dissuadir.

A roupa nos torna conformados ou rebeldes. Os que prescrevem ou proíbem certos tipos de traje para as mulheres querem mudar a sociedade ou preservar uma determinada moral social. Até hoje, as mulheres não devem decidir por si sós o que vestem, porque sua roupa é um campo de batalha simbólico.

Um homem atira um caminhão sobre a multidão na esplanada à beira-mar em Nice e mata 86 pessoas, enquanto mulheres em Cannes, a 33 quilômetros de distância, são proibidas de usar o burquíni.

Hoje tentamos determinar nosso relacionamento com o islamismo por meio de nossas atitudes sobre o lenço de cabeça, a burca ou o burquíni. Definimos a burca e o lenço como símbolos. Mas do quê, exatamente? Da opressão das mulheres no islã, ou de seu protesto contra a dominação do Ocidente?

O véu pode ser muitas coisas. Pode sinalizar a reivindicação de propriedade de um homem sobre sua mulher, garantindo que outros homens não possam olhar para ela. Pode ser a mensagem de uma mulher para os homens de que ela não está disponível. Mas também pode ser sedutor, como os lenços coloridos usados por algumas, que os combinam com maquiagem vistosa, casacos justos e saltos altos, de modo que acabam sendo recatadas em cima e sensuais embaixo.

"O debate da burca", diz a acadêmica literária Barbara Vinken, "nos permite um novo olhar para nossa ordem de gênero em público." Os homens e as mulheres nas culturas ocidentais também não são equivalentes, acrescenta ela.

Os homens usam ternos, deixando apenas o rosto visível, e uma mensagem erótica raramente é associada à vestimenta masculina. Durante muito tempo os homens não quiseram que as mulheres se vestissem como eles. Não aprovavam que elas usassem calças, que representavam poder, sucesso e credibilidade.

A chanceler alemã Angela Merkel usa ternos, como a maioria das ministras de seu gabinete. Até hoje é provável que uma mulher seja levada mais a sério na Alemanha se estiver usando um terno em vez de saia.

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AFP

Olhar masculino

O debate da burca nos confronta com nossas próprias inseguranças. Até onde a moda feminina é autodeterminada no Ocidente? Até que ponto ela é moldada por restrições sociais, pressão de grupo, convenções, programas como "A Próxima Top Model da Alemanha" e os ditames da indústria da moda? O movimento feminista ainda está dividido sobre se o corpo visível da mulher, a pele nua e a minissaia são de fato sinais de liberdade ou degradam as mulheres como objetos sexuais.

O assunto se resume ao olhar masculino, no islã certamente. Tradicionalmente, o véu (hijab) era uma cortina para proteger as esposas de Maomé do olhar de seus visitantes. A cultura islâmicadifere fundamentalmente da ocidental no fato de cobrir as coisas preciosas. Não há imagens nas mesquitas, e certamente nenhum ícone. A visibilidade a a transparência não têmconotações positivas: a preferência é pelo oculto, o invisível e o indireto.

O véu significa respeito. As mulheres mais pobres tinham de trabalhar, e como uma mulher pode trabalhar no campo usando o chador? Era a vestimenta das mulheres ricas, privilegiadas.

Mas o Ocidente esclarecido também aceita fazer concessões ao cobiçoso olhar masculino. A capacidade de controlar o desejo, muitas vezes considerada uma vantagem civilizatória do homem ocidental, também tem seus limites.

Um ano atrás, a Alemanha foi envolvida em uma breve mas acalorada discussão sobre shorts femininos nas escolas. Uma diretora escolar no Estado de Baden-Württemberg escreveu uma carta aos pais afirmando que os shorts muito curtos deviam ser proibidos em sua escola. Ela disse que os alunos e os professores homens não deviam ser distraídos na classe pelas exibições dos encantos das alunas.

E há pouco tempo minha filha de 15 anos trouxe para casa uma carta de seu professor de educação física. A carta, que exigia a assinatura dos pais, declarava que os pais deveriam prometer que suas filhas usariam roupas decentes nas aulas. Barrigas expostas são proibidas, assim como blusas com alças finas. Segundo a carta, as meninas deveriam ter pelo menos três dedos de tecido sobre cada ombro. Parecia que a escola preferia ver as alunas de burquíni no atletismo.

A escola afirmou que a medida era necessária porque evitaria que as crianças se ferissem. "De outro modo, eles podem se chocar com alguma coisa!", explicou o professor de educação física àsmeninas. No entanto, não há regras para os meninos, que podem aparecer sem camisa nas quadras esportivas. As meninas ficaram furiosas. Isso não é injusto?

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Efe

O que a mulher preferir

Mas a vestimenta dos homens também foi regulamentada pelo Estado ao longo da história. O exemplo mais famoso é a revolução do chapéu de Kemal Ataturk, na Turquia. Assim como o véu e o lenço, a cobertura de cabeça tradicional dos homens se tornou um símbolo de atraso nos anos 1920. Em seu famoso discurso do chapéu, Ataturk defendeu os chapéus em estilo ocidental, e logo surgiu um decreto legal que decidia: "A cobertura de cabeça geral da população turca é o chapéu, e o governo proíbe a continuidade de um hábito contraditório".

Para as mulheres, o lenço e o véu foram banidos da vida pública, das escolas, universidades e serviço público. O retorno do lenço de cabeça sob o presidente Recep Tayyip Erdogan não é portanto apenas um sinal de islamização, mas também de protesto contra um Estado secular autoritário.

No último século, a batalha sobre a vestimenta foi um conflito entre tradição e modernidade, mas hoje está sobreposta pelo contraste entre o islã e o Ocidente. Fora do Ocidente, as roupas eram geralmente associadas à busca de uma identidade única não ocidental. O objetivo era preservar as tradições ou desenvolver uma era moderna separada. Isso é personificado pela túnica Mao e a camisa Nehru, assim como pela moda feminina muçulmanamoderna.

A globalização levou à marcha triunfal das marcas de moda ocidentais por todo o mundo. De ternos e gravatas a jeans, camisetas e tênis, o estilo ocidental de vestimenta parece ter-se tornado universal. No entanto, a globalização também incorpora o movimento oposto, conforme roupas estrangeiras aparecem em nossas ruas e escolas. Vemos isso como demarcação e provocação, e como sinais do fracasso dos esforços de integração. Lutamos por causa do lenço.

Em nenhum lugar o debate sobre o lenço de cabeça foi travado tão asperamente quanto na França. Já em 1989, no chamado caso do lenço islâmico, três meninas foram expulsas da escola por se recusarem e tirar seus lenços. Em 2004, o governo aprovou uma proibição geral do lenço nas escolas primárias e secundárias públicas, e a burca foi proibida em 2011.

Hoje também há leis na Alemanha que regulamentam onde as mulheres podem usar o lenço ou não. A batalha sobre o lenço islâmico nos mostra os limites de nosso próprio liberalismo esclarecido. De repente, não sabemos mais quão liberais queremos ser. Disfarçamos nossa própria falta de liberalidade com a alegação de querermos libertar as mulheres de outras culturas.

Talvez o capitalismo acabe prevalecendo, e nesse caso talvez não seja tão ruim. As marcas de moda ocidentais hoje estão criando moda muçulmana. A DKNY foi uma das primeiras, com sua Coleção Ramadã 2014. Inversamente, a moda oriental também influencia os estilistas ocidentais. Talvez vejamos a ascensão de um código de não vestimenta global, em que basicamente valerá tudo --inclusive o que a mulher decidir usar.