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Mesmo com imagem de fora da lei, Hells Angels defendem marcas com unhas e dentes

Serge F. Kovaleski

Em Phoenix (EUA)

05/12/2013 06h00

Fritz Clapp, um advogado de 67 anos com um cabelo moicano vermelho, exerce direito de propriedade intelectual. Anos atrás, seus clientes eram "pequenas empresas das quais ninguém tinha ouvido falar". Então ele encontrou algo maior.

Hoje, Clapp, um homem irreverente e eloquente conhecido por usar um barrete roxo durante negociações com outros advogados, representa os interesses de um grupo que não costuma ser associado à propriedade intelectual: o Hells Angels Motorcycle Club. Seu papel principal não é o de duro advogado de defesa criminal de um grupo notório, mas sim o de um advogado civilizado em sua batalha incansável para proteção das muitas marcas registradas do grupo.

Apenas nos últimos sete anos, os Hells Angels impetraram mais de uma dúzia de casos na Justiça federal, alegando violações em vestuário, joias e pôsteres. O grupo também contestou os domínios de sites na internet e um filme de Hollywood --todos por usarem o nome e insígnias do clube de motociclistas. Os réus são grandes corporações conhecidas, como Toys R Us, Alexander McQueen, Amazon, Saks, Zappos, Walt Disney e Marvel Comics. E incluem a grife de roupas de um rapper e uma adolescente que estava vendendo patches bordados no eBay com um design que lembrava o logo "cabeça da morte" do grupo.

Os Hells Angels permanecem gravados na imaginação popular como homens carrancudos altamente musculosos, em trajes de couro e que olham por trás de guidões elevados de motos, prontos para encarar qualquer um que cruze o caminho deles --rebeldes sem uma causa em particular, exceto sua própria forma de irmandade ritualizada. Mas, com o passar dos anos, o grupo deu coletivamente um salto de imagem para a marca, transformando-se em um nome reconhecido e promovendo a si mesmo em itens como camisetas, canecas e calça para yoga feminina. Sonny Barger, 75, o líder há muito tempo dos Hells Angels, já tem seu próprio mercado online de bens que levam seu nome: óculos escuros, garrafas de cabernet sauvignon e livros que escreveu.

Com mais para vender e mais para proteger, a mudança dos Hells Angels para questões judiciais representa uma reviravolta: os motociclistas estão cada vez mais empregando o mesmo sistema legal que costumavam desprezar como sendo parte da máquina que os definiu como criminosos.

O lado menos conflituoso do grupo surgiu à medida que seu quadro de membros mais velho foi renovado por novos membros de uma fonte historicamente familiar --veteranos militares recentes-- e à medida que o motociclismo em geral cresceu em popularidade por todo o país.

"Nós espancávamos e esfaqueávamos pessoas a torto e direito no passado, mas isso é menos comum agora", disse Richard Mora, conhecido como Chico, um membro da sede do Hells Angels de Phoenix.

Mesmo assim, 65 anos após a fundação dos Hells Angels em Fontana, Califórnia, ele ainda existe como uma subcultura exclusivamente americana de individualismo endurecido, forte fraternidade e desprezo pelos costumes da sociedade.

Em seu mundo cheio de regras, apenas os membros plenos podem usar o patch provocador "cabeça da morte" ou as duas palavras do nome do clube, que, assim como o logo, é marca registrada da organização. Separadamente, o grupo vende produtos ao público nos sites do clube e nas festas e eventos de caridade dos Hells Angels. O clube abriu recentemente uma loja física em Toronto.

Designações como 81 (H e A são a oitava e a primeira letras do alfabeto) e Big Red Machine (as cores do Hells Angels são vermelho e branco) estão em uma série de produtos, incluindo camisetas (tamanhos infantis disponíveis), gorros, tops, biquínis, cuecas, alfinetes de lapela, charutos, chaveiros, decalques e calendários.

Os motociclistas geralmente resolvem seus processos com acordos com termos favoráveis, extraindo concessões das partes acusadas ao fazê-las pararem de usar as marcas registradas, destruírem e fazerem o recall de mercadorias e, em alguns poucos casos, pagando indenização.

Unidos no merchandising e no litígio, os Hells Angels dizem que ainda continua sendo um clube definido pela descentralização, com cada sede operando individualmente. Mas as autoridades argumentam que o grupo funciona de uma forma mais coesa, estruturada. O policiamento do Hells Angels e de outros grupos semelhantes de motociclistas cabe ao Birô de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos (ATF).

"Segundo minha experiência trabalhando com gangues de rua e de motociclistas, os Hells Angels operam como uma organização criminosa, com uma infraestrutura global e muito dinheiro", disse John Ciccone, um agente especial do ATF em Los Angeles, que cuida de gangues há mais de duas décadas.

Ele acrescentou: "Se você atua contra os Hells Angels para provar que é um empreendimento de extorsão, eles contam com recursos para lutar contra você até o final. Você não costuma ver essa dinâmica em gangues de rua como Crips e Bloods".

Propriedade intelectual

O primeiro caso de Clapp para os Hells Angeles foi um processo em 1992 contra a Marvel Comics, que tinha batizado uma revista em quadrinhos e seu personagem principal de Hell's Angel. A empresa mudou o nome para "Dark Angel" e concordou em doar US$ 35 mil para uma caridade infantil.

Proteger as marcas registradas do clube é o trabalho de Clapp desde então. Ele é advogado da 'Hells Angels Motorcycle Corporation', uma empresa sem fins lucrativos estabelecida na Califórnia em 1970 que possui e protege a propriedade intelectual do clube. A empresa, que conta com conselho diretor, é controlada pelas centenas de sedes locais que formam o clube Hells Angels.

"Parte da estratégia é impetrar casos chamativos e expô-los de forma positiva na Justiça federal e na mídia", disse Clapp, que se formou pela Escola McGeorge de Direito em Sacramento, Califórnia. "A intenção não é apenas punir os infratores, mas educar o público de que as marcas Hells Angels são protegidas e não genéricas e não devem ser infringidas."

A vida no clube

O prédio baixo vermelho e branco, com uma grande "cabeça da morte" e as palavras 'Hells Angels Motorcycle Club' na lateral, fica situado em uma rua tranquila às margens do centro de Phoenix, isolada por cerca dos conjuntos habitacionais próximos e de alguns escritórios de pagamento de fiança. Esse é a sede de Phoenix. Dentro, cerca de dez membros do clube circulam em um longo bar, bebendo drinques e pondo comida na mesa para seu encontro regular, altamente secreto, conhecido como "igreja".

A sede do clube parece um museu Hells Angels. A cabeça da morte está presente em almofadas e luminárias. Há um poste de stripper na sala da frente e máquinas caça-níqueis na sala do fundo. Slogans e fotos dos Hells Angels cobrem as paredes. No pátio, 81 está pichado em uma lata de lixo enferrujada ao lado de uma placa da Rodovia 81.

Com 1,88 metro de altura, 158 quilos e um cabelo longo ensebado, Mora é um Hells Angels veterano de Phoenix.

"Os novos membros são mais jovens, mais inteligentes e esclarecidos, e têm motos melhores", disse Mora, um operário de construção sexagenário que há muitos anos cumpriu pena por homicídio. "Eles são melhores na leitura das ruas, em ver nossos inimigos e perceber padrões e mudanças. Eles também são mais escrupulosos."

Andres Ospina, 33, conhecido como Oz, que lutou com o Corpo dos Marines no Iraque, é outra adição recente aos Hells Angels no Arizona. Ele luta contra estresse pós-traumático e depressão, mas disse que encontrou consolo na camaradagem do clube, que ele comparou a voltar ao seu pelotão, seu “lugar seguro”.

"Eu dou crédito ao clube por ter salvo minha vida", disse Ospina, que recebe benefícios de invalidez das forças armadas. "Eu tinha duas opções: poderia me tornar antissocial e me trancar em um apartamento, reclamando das coisas que me incomodavam, ou poderia me socializar com pessoas de mentalidade semelhante."

Segurando seu colete dos Hells Angels, Ospina, pai de dois filhos, disse: "De certo modo, esta é a minha armadura agora. Ela mantém as pessoas distantes. Eu estou literalmente lutando pelo direito de ser quem quero ser e ser deixado em paz".

Atraindo suspeita

Em Black Canyon City, Arizona, Howie Weisbrod, 65, um membro da sede de Cave Creek, estava ajudando na segurança de um bar onde cerca de cem Hells Angels usando coletes e jaquetas do clube se misturavam em uma celebração em homenagem ao líder Barger.

Weisbrod, um homem corpulento do Brooklyn, Nova York, disse que as autoridades "são obcecadas por nós porque somos os Hells Angels Motorcycle Club e um alvo visível". E acrescentou: "Elas nos veem como uma espécie de símbolo. Elas acham que, se nos controlarem, controlarão outros clubes. Mas isso não é verdade".

Hells Angels há quatro décadas, ele já teve seus encontros com as autoridades, tendo passado cerca de dez anos em prisões federais por uma condenação por drogas e armas.

O que ele chama de obsessão, as autoridades consideram uma necessidade. Agentes estaduais e federais rejeitam a noção de que os Hells Angels e alguns clubes rivais de motociclistas são apenas pontos de encontro de pessoas duronas e antissociais. Para eles, as unidades dos Hells Angels são covis que forjam conspirações criminosas perigosas.

Weisbrod e outros Hells Angels reconhecem que o endurecimento das leis estaduais e federais para gangues, que podem aumentar significativamente as sentenças de prisão, contribuiu para a redução da criminalidade. No final de 2009, um júri em Phoenix condenou um membro chamado Nathaniel Sample por dois crimes e determinou que o Hells Angels era uma gangue. Sample, condenado por agressão com agravante e por auxiliar uma gangue de rua criminosa, foi sentenciado a oito anos de prisão, uma pena em grande parte resultado da acusação de envolvimento com gangue.

Designação criminosa

Em 2011, o Departamento de Estado e o Departamento de Segurança Interna acrescentaram os Hells Angels e outros clubes de motocicletas a uma lista de organizações criminosas que inclui a Máfia, as Tríades chinesas e a Yakuza japonesa. A classificação dificulta para que membros estrangeiros desses grupos entrem nos Estados Unidos para passeios de moto e outros eventos do clube.
Um caso recente que exemplifica, para as autoridades federais, por que designaram alguns clubes de motocicletas como organizações criminosas é um contra o Hells Angels da cidade de Rock Hill, Carolina do Sul, um subúrbio de Charlotte, Carolina do Norte.

Em junho de 2012, 20 membros, candidatos e associados foram presos em um caso federal de extorsão baseado em grampos telefônicos, vigilância, gravações de vídeo, compras controladas e um informante pago. As acusações abrangiam muitas atividades ilícitas: distribuição de drogas, tráfico de armas de fogo e bens roubados, prostituição, incêndio criminoso, roubo e outras violências, extorsão e lavagem de dinheiro.

Dezesseis dos réus foram condenados por crimes relacionados à conspiração de extorsão. Uma dúzia deles conseguiu acordos, incluindo o vice-presidente de sede, Daniel Bifield, conhecido como Diamond Dan. Ele foi sentenciado a 17 anos e meio em um presídio federal.

"A forma como passaram impunes por algum tempo se deve aos Hells Angels terem grupos isolados e usar código de modo sofisticado e esquivo", disse Jay N. Richardson, um promotor assistente federal que trabalhou no caso. "Substituir o cromo em uma moto, por exemplo, refere-se tanto a negócios legítimos quanto ilícitos."

Uma coisa que não mudou é que Hells Angels continua sendo o maior nome na constelação do motociclismo fora da lei. Seus membros são considerados os mais sofisticados e leais dentro todos os grupos de motociclistas e acredita-se que o processo para se tornar membro seja o mais árduo, o que dificulta a infiltração de um policial.

"O Hells Angels não recruta", disse Troy Regas, presidente da sede do clube em Nevada. "Hells Angels é uma das maiores marcas do mundo. É como a Harley-Davidson."

Mas os agentes persistem e, após serem atingidos por infiltrações, os grupos de motociclistas agora realizam checagem rígida dos antecedentes dos membros potenciais e empregam detetives particulares. Os clubes ministram testes com detectores de mentira e exigem o preenchimento de requerimentos detalhados e até referências de presidiários.