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Conheça Poonam, uma escrava do século 21

Nicholas Kristof/The New York Times
Imagem: Nicholas Kristof/The New York Times

Nicholas Kristof

Em Katmandu (Nepal)

27/10/2015 06h00

Quando os leitores ouvirem falar de “escravidão moderna” nos Estados Unidos ou no exterior, talvez revirem os olhos e digam que é exagero. Escravidão? Mesmo? Escravidão moderna?

Se você está entre os céticos, então ouça Poonam Thapa, uma adolescente que conheci aqui no Nepal, onde está reconstruindo sua vida depois de ter sido vendida para um bordel.

E se você pensa, como sugeriu recentemente a Anistia Internacional, que a solução é descriminalizar o comércio sexual em todo o mundo, então preste bem atenção.

Poonam era pobre e sem instrução quando uma mulher ofereceu uma escapatória sob a forma de um emprego bem remunerado. “Você pode ter uma vida melhor”, Poonam lembra da mulher dizendo. “E se você fizer um bom dinheiro, você será respeitada pelo seu pai. Você poderá ajudar a sua família.”

Então Poonam, com 12 anos, fugiu com a mulher. Quando Poonam acabou sendo depositada em um bordel em Mumbai, na Índia, ela ficou intrigada. “Eu nem sabia o que era um bordel”, lembra ela.

A dona do bordel, colocou nela um vestido decotado, equipou-a com seios postiços e fez ela usar saltos altos. Em seguida, a proprietária vendeu a virgindade de Poonam para um homem mais velho.

“O homem me estuprou”, diz Poonam. “Eu não sabia o que ele estava fazendo. Mas eu estava sangrando e doía e eu chorava.”

A dona do bordel mandou Poonam se recompor --ela tinha pago US$ 1.700 (cerca de R$ 6.800) pela garota e precisava recuperar seu investimento. Então Poonam ficava trancada dentro do bordel, forçada a ter relações sexuais com 20 a 25 homens por dia, e mais aos domingos e feriados. Não havia dias de folga, nem passeios fora do bordel e, é claro, não havia remuneração.

Um dia, Poonam estava com muita dor e recusou um cliente. Ela conta que a dona do bordel espancou-a e queimou-a com cigarros; ela me mostrou as cicatrizes.

Assim, Poonam tornou-se uma das 20,9 milhões de pessoas em todo o mundo --um quarto delas sendo de crianças-- submetidas a trabalho forçado, de acordo com a OIT (Organização Internacional do Trabalho da ONU). Nos Estados Unidos, dezenas de milhares de crianças são traficadas por ano para o comércio sexual.

Os homens visitando o bordel de Poonam pagavam US$ 2,50 pelo sexo e eram, por vezes alheios à brutalidade, lisonjeando-se de que as meninas gostavam de seu trabalho. Eles veem as meninas sorrindo e ninguém está segurando uma arma apontada para suas cabeças.

Poonam respondeu como tantas outras: os sorrisos eram por fora, enquanto, por dentro, as meninas estão chorando.

“Elas nos mandavam sorrir, porque sorriso é dinheiro e atrai clientes”, disse Poonam. As meninas também recebiam ordens de dizer que eram maiores de 18 anos e que trabalhavam voluntariamente.

Então, um dia, a polícia invadiu o bordel. Advertida pela dona do bordel de que a polícia iria torturá-la se achasse que ela era criança ou traficada, Poonam alegou que tinha 23 anos e que trabalhava voluntariamente, mas a polícia conseguiu identificar que ela era uma criança e levou-a para um abrigo.

As autoridades indianas devolveram Poonam aos cuidados do Maiti Nepal, uma organização importante no combate ao tráfico. Agora Poonam está estudando para ser assistente social na esperança de ajudar outras meninas traficadas. Um novo estudo sugere que o transtorno de estresse pós-traumático é frequente entre as vítimas de tráfico.

Anuradha Koirala, fundadora do Maiti Nepal, observa que houve certo progresso no combate ao tráfico sexual de meninas nepalesas. Um passo crucial, seja no Nepal ou nos Estados Unidos, é acabar com a impunidade para os cafetões e traficantes, e Koirala diz que o Maiti Nepal ajudou a processar 800 pessoas pelo envolvimento com tráfico.

Nos EUA também precisamos processar os traficantes, em vez de suas vítimas.

Muitas pessoas bem-intencionadas defendem a proposta da Anistia Internacional, de descriminalização total do comércio do sexo, inclusive de cafetões e bordéis, e é certamente verdade que algumas mulheres (e homens) trabalham no comércio do sexo voluntariamente.

No entanto, na prática, abordagens semelhantes à da Anistia acabaram simplesmente conferindo maior poder aos cafetões. E apesar dessas propostas manterem o tráfico humano ilegal, a polícia já não teria uma razão para invadir os bordéis em busca de meninas como Poonam.

Tanto Poonam quanto Koirala acham que a descriminalização total é uma ideia catastrófica; se já estivesse em vigor, Poonam talvez ainda estivesse escravizada.

“Não há nenhuma proteção para os oprimidos”, disse Koirala sobre a descriminalização total. “Todos os benefícios vão para os perpetradores e exploradores.”

A verdade nua e crua é que nenhuma estratégia funciona muito bem contra o tráfico. Talvez a mais bem sucedida tenha sido a da Suécia, que reprime os traficantes e os clientes, enquanto fornece serviços sociais e vias de escape para as mulheres no comércio sexual.

Estou no Sul da Ásia em minha viagem premiada anual com um estudante --este ano é Austin Meyer, da Universidade de Stanford-- para fazer reportagens sobre questões sociais negligenciadas. O tráfico humano é isso, uma forma feia de exploração que, em seu pior, representa a escravidão moderna. No século 21, não seria finalmente a hora de abolir a escravidão para sempre?