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Remédios, ganância e um menino morto

Andrew Francesco morreu aos 15 anos de idade após complicações provocadas pelo medicamento Seroquel - The New York Times/Divulgação
Andrew Francesco morreu aos 15 anos de idade após complicações provocadas pelo medicamento Seroquel Imagem: The New York Times/Divulgação

Nicholas Kristof

06/11/2015 06h01

Andrew Francesco era um menino ruidoso, atlético e alegre, mas também difícil de controlar. Quando tinha 5 anos, um psiquiatra lhe prescreveu Ritalin. Ao crescer, ele perturbava as aulas e recebeu um número cada vez maior de antipsicóticos e outras medicações fortes.

Estas não funcionavam, então lhe davam mais. Expulso de várias escolas, Andrew tornou-se frustrado, infeliz e às vezes assustador. Seus pais esconderam as facas de cozinha. Então sua mãe morreu, aos 54 anos; a família acredita que o estresse de criar Andrew foi um fator.

Quando Andrew tinha 15 anos, os medicamentos foram excessivos e ele sofreu um problema raro causado por um deles, Seroquel. Numa sexta-feira ele estava bem o suficiente para ir à escola; no sábado estava morto.

Essa é a história que Steven Francesco, um antigo executivo e consultor da indústria farmacêutica, narra em "Overmedicated and Undertreated" (Supermedicado e subtratado, em tradução livre), sua perturbadora memória sobre a criação de Andrew, seu filho. Ele deixa claro que o maior problema --mesmo do seu ponto de vista como membro da indústria-- é um setor que às vezes coloca os lucros à frente do bem-estar público.

Esta é a questão central: crianças com problemas emocionais ou mentais tornaram-se uma mina de ouro para a indústria de medicamentos. Os remédios psiquiátricos para crianças representam bilhões de dólares em vendas anuais, e o mercado está pujante.

Entre meados dos anos 1990 e o final dos 2000, as prescrições de antipsicóticos para crianças aumentaram cerca de sete vezes.

E agora a indústria está ficando ainda mais gananciosa. Está reivindicando um direito da Primeira Emenda da Constituição que lhe permitiria comercializar suas drogas para usos não especificamente aprovados ("off-label", literalmente "fora do rótulo"), um caminho que tornaria especialmente vulneráveis crianças com problemas de saúde mental como Andrew.

Você pode pensar na livre expressão como um direito das pessoas a discordar; os executivos farmacêuticos a veem como uma ferramenta para vender drogas para usos não aprovados.

Dois tribunais decidiram a favor dos laboratórios. É a vitória de uma ideologia que vê as corporações como atores virtuosos que possuem liberdades individuais, e os reguladores como retrógrados inconfiáveis.

"As recentes decisões judiciais podem desgastar o processo de aprovação da FDA (Agência de Alimentos e Drogas na sigla em inglês), criado para proteger o público, e ameaçar a saúde do público e a segurança dos pacientes", adverte a doutora Margaret Hamburg, até recentemente comissária da FDA.

Especialistas em saúde mental temem que essas decisões possam levar a "terríveis problemas, ao confundir ciência com marketing", disse o doutor Steven E. Hyman, perito de Harvard em psiquiatria e ex-diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental.

Segundo Francesco, de todos os medicamentos psiquiátricos administrados a crianças, 80% já são "off-label", o que significa que a FDA não aprovou seu uso para aquela finalidade. Às vezes o uso não aprovado tem sentido, mas deve ser feito com cuidado, não apenas em consequência do marketing agressivo de laboratórios que simplesmente visam aumentar os lucros.

"As crianças, cujos cérebros ainda estão em desenvolvimento, não são apenas pequenos adultos", comenta Hyman.

A indústria farmacêutica mostrou repetidamente por que "regulamentação" não deve ser um palavrão na política americana:

--No início dos anos 1960, muitos países permitiram a "droga maravilhosa" talidomida para tratar enjoos matinais em gestantes. Uma médica heroica da FDA, Frances Kelsey, resistiu à pressão da indústria para aprovar a talidomida nos EUA, assim evitando milhares de terríveis defeitos de nascença como os que foram causados em outros países.

--Em meados dos anos 1990, as companhias farmacêuticas afirmaram que os médicos sistematicamente subtratavam a dor, e como solução os fabricantes comercializaram opioides de forma agressiva. O comportamento das empresas foi às vezes criminoso (executivos da companhia que fabricava OxyContin se confessaram culpados de acusações criminais), mas também enormemente lucrativo. Isto ajudou a causar uma crise de dependência de analgésicos vendidos sob receita e de heroína; hoje, as superdoses de drogas matam mais americanos que as armas ou os carros.

--Em uma coluna recente, contei novamente como a Johnson & Johnson comercializou enganosamente um remédio antipsicótico chamado Risperdal, escondendo por exemplo o fato de que ele pode fazer os meninos terem seios grandes e caídos. A J&J foi apanhada, confessou-se culpada e pagou mais de US$ 2 bilhões em penalidades e acordos --mas também registrou US$ 30 bilhões em vendas de Risperdal. O executivo que supervisionou essa iniciativa ilegal de marketing foi Alex Gorsky, mais tarde promovido a executivo-chefe da J&J. Quando se é uma companhia farmacêutica, o crime às vezes compensa.

É verdade que as farmacêuticas literalmente salvam vidas, é claro. De fato, elas podem ter me salvado da malária. Steven Francesco diz que enquanto uma droga matou Andrew outra parecia ajudá-lo, embora ele diga também que a terapia animal, na forma de um cachorro, pareceu ajudar mais. A saúde mental das crianças é especialmente complexa, com difíceis meandros, e exige supervisão.

Pense nos carros: eles também oferecem um enorme benefício, mas necessitam de uma regulamentação cuidadosa.

Por isso, se você concorda com a gritaria dos políticos hoje contra a regulamentação, ou se você pensa que as empresas farmacêuticas devem gozar do direito à livre expressão para vender remédios, então fale com uma família que luta contra o vício em opiáceos. Ou com o pai de um filho da talidomida. Ou consulte a família enlutada de Andrew Francesco.