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Fundo norte-americano é acusado de comprar irregularmente terras no Brasil

Documentos mostram que grupo norte-americano gastou milhões em compra irregular de áreas agrícolas - Marizilda Cruppe/The New York Times
Documentos mostram que grupo norte-americano gastou milhões em compra irregular de áreas agrícolas Imagem: Marizilda Cruppe/The New York Times

Simon Romero

Em São Paulo

18/11/2015 06h00

Como uma gigante de investimento americana que administra os fundos de aposentadoria de milhões de administradores universitários, professores de escolas públicas e outros, a Tiaa-Cref se orgulha de defender valores socialmente responsáveis, até mesmo celebrando seu papel na elaboração dos princípios das Nações Unidas para compra de terras agrícolas que promovem transparência, sustentabilidade ambiental e respeito pelos direitos fundiários.

Mas documentos mostram que as incursões da Tiaa-Cref na fronteira agrícola brasileira seguiram em outra direção.

A gigante financeira americana e seus parceiros brasileiros gastaram centenas de milhões de dólares em acordos envolvendo terras agrícolas no cerrado, uma imensa região à beira da Floresta Amazônica, onde o cerrado está sendo desmatado para abrir caminho para a expansão agrícola, alimentando preocupações ambientais.

Em um empreendimento labiríntico, o grupo financeiro americano e seus parceiros acumularam novas terras agrícolas apesar da decisão do governo brasileiro em 2010 de proibir acordos de grande escala desse tipo por estrangeiros.

Apesar de a medida ter frustrado as ambições de outros investidores estrangeiros, a Tiaa-Cref seguiu em frente em uma parte do Brasil repleta de conflitos de terras, expondo a empresa e seus parceiros a acusações de terem adquirido terras junto a especuladores obscuros, acusados de empregar homens armados para tomar terras à força de agricultores pobres.

Os documentos oferecem um vislumbre de como um dos maiores grupos financeiros dos Estados Unidos participou do que alguns no mundo em desenvolvimento condenam como tomada de terras.

Escala industrial versus tradição agrícola

Respondendo em 2010 a um aumento do interesse internacional por terras no país, o Ministério da Justiça limitou significativamente os estrangeiros de realizarem aquisições em grande escala de terras agrícolas.

Os investidores às vezes veem esses acordos como uma forma de diversificar seus portfólios. Mas algumas autoridades do governo e ativistas argumentam que eles expulsam os produtores rurais pobres, transferem o controle de recursos vitais de produção de alimentos para uma elite global e destroem as tradições agrícolas em prol de plantações em escala industrial, que produzem alimentos para exportação.

"Eu já tinha ouvido que fundos estrangeiros estavam tentando contornar a legislação brasileira, mas algo nessa escala é impressionante", disse Gerson Teixeira, o presidente da Associação Brasileira para a Reforma Agrária e um consultor de membros do Congresso, referindo-se aos documentos sobre os acordos envolvendo terras agrícolas da Tiaa-Cref no Brasil.

Algumas das revelações estão em um novo relatório por pesquisadores da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos do Brasil e da Grain, uma organização com sede na Espanha que monitora compras de terras em todo o mundo.

Evidenciação da Tiaa-Cref mostra que sua posse de terras agrícolas no Brasil cresceu de 104.359 hectares em 2012 para 256.324 hectares no início de 2015, época em que começou a aumentar os acordos por meio de um empreendimento formado com a Cosan, uma gigante brasileira de açúcar e biocombustíveis.

Stewart Lewack, um porta-voz da Tiaa-Cref, concordou em rever vários aspectos da estrutura complexa desses acordos, mas se recusou a discutir a aquisição de terras agrícolas. Ele arranjou discussões adicionais com executivos da Cosan, que é controlada por Rubens Ometto, um bilionário cuja família atua na indústria do açúcar desde os anos 30.

"A Cosan tem uma história de 70 anos de gestão de terras agrícolas no Brasil e está comprometida a altos padrões de investimento responsável por meio das entidades que controla", disse uma porta-voz da Cosan em uma declaração.

As duas empresas começaram a comprar terras agrícolas no Brasil em 2008, após formarem um empreendimento chamado Radar Propriedades Agrícolas, cuja divisão de propriedade é de 81% da Tiaa-Cref e 19% da Cosan. Apesar da Cosan dizer às autoridades brasileiras que controla o empreendimento por meio de suas cadeiras no conselho diretor, a Tiaa-Cref lista a Radar entre suas "afiliadas de propriedade majoritária".

Então ocorreu a repressão pelo Brasil em 2010 à aquisição de terras agrícolas por estrangeiros, que ocorreu em um momento de crescente nacionalismo de recursos aqui, acentuado por esforços para exercer um maior controle sobre o setor de energia.

Na agricultura, a mudança envolveu a limitação da venda de terras agrícolas para estrangeiros a 5 mil hectares, os proibindo de possuírem mais de 25% das terras em qualquer municipalidade e impondo limites às subsidiárias brasileiras de grupos estrangeiros.

"Essas medidas pisaram fundo nos freios do investimento estrangeiro em terras brasileiras", disse Kory Melby, um americano que orienta os investidores na agricultura brasileira.

Mas em vez de reduzir suas atividades, a Tiaa-Cref intensificou suas aquisições de terras agrícolas brasileiras, se concentrando principalmente em uma fronteira nos Estados nordestinos do Maranhão e Piauí. Em 2012, a empresa iniciou um fundo global voltado a compra de terras agrícolas no Brasil, Austrália e Estados Unidos, atraindo investimento de fundos de pensão suecos e canadenses.

Devido aos limites de 2010 ao investimento estrangeiro, a Tiaa-Cref e seus parceiros brasileiros criaram um empreendimento financeiro para compra de terras. O grupo americano é detentor de uma participação acionária de 49%, com a Cosan detentora de 51%, segundo documentos regulatórios brasileiros.

Apesar do novo empreendimento parecer no papel ser uma empresa separada, na prática ele parece indistinguível do empreendimento anterior. Eles compartilham muitos dos mesmos funcionários e executivos, que trabalham em escritórios na Avenida Juscelino Kubitschek, aqui em São Paulo, segundo pessoas familiarizadas com as operações.

Além disso, o financiamento para as aquisições de terras agrícolas vem em grande parte de subsidiárias da Tiaa-Cref, em um tipo de empréstimo que pode ser convertido em ações, segundo os documentos regulatórios. Os pesquisadores da Grain argumentam que esse tipo de estrutura corporativa possibilita à Tiaa-Cref esconder o controle que exerce sobre as terras que adquire.

"Eles podem dizer o que quiserem sobre o controle, mas a questão é que" essas estruturas "só foram criadas para servir ao propósito de canalizar fundos da Tiaa-Cref para terras agrícolas brasileiras", disse Devlin Kuyek, um pesquisador sênior da Grain.

Em uma declaração, a Cosan contestou essa posição. "Em todas as suas aquisições", o empreendimento "segue rigidamente a legislação em vigor", disse a empresa.

Os ativistas não acusam a Tiaa-Cref e a Cosan de terem desmatado as savanas. Em vez disso, eles dizem que as empresas compraram terras que já tinham sido desmatadas e obtidas por especuladores que podem ter empregado táticas cruéis.

O relatório da Grain mostra como a Tiaa-Cref e a Cosan parecem ter adquirido várias fazendas controladas por Euclides de Carli, uma figura sombria descrita por legisladores brasileiros, acadêmicos e agricultores expulsos de suas terras como um dos mais poderosos "grileiros" nos Estados do Maranhão e Piauí.

Os grileiros são conhecidos por suas trapaças burocráticas, fabricando falsos títulos de terras ao colocá-los em caixas cheias de insetos para que pareçam antigos. Alguns grileiros também forçam as pessoas a saírem de suas terras de várias formas, incluindo intimidação de ativistas de direitos fundiários e até mesmo matando fazendeiros pobres.

No caso de De Carli, acadêmicos brasileiros descreveram como ele expulsou dezenas de famílias de suas terras, usando táticas como a destruição das plantações ou incendiando a casa de um líder comunitário. Um proeminente legislador do Maranhão também acusou De Carli de orquestrar a morte de um trabalhador rural devido a uma disputa de terras.

De Carli, que é alvo de investigações oficiais sobre suas compras de terras, não respondeu aos pedidos de comentários. Em uma declaração, a Cosan reconheceu que seu empreendimento com a Tiaa-Cref comprou terras controladas por De Carli, mas insistiu que um levantamento exaustivo nas esferas federal, estadual e municipal não apontaram "nenhum processo criminal envolvendo o nome do sr. Euclides de Carli".

Segundo a Cosan, "a avaliação conduzida precisa observar os documentos e informações oficiais que garantem a segurança da aquisição".

Mas promotores familiarizados com De Carli ainda expressaram surpresa por investidores proeminentes realizarem negócios como esses, quando uma simples pesquisa na Internet revela uma longa lista de acusações de apropriação ilegal de terras contra De Carli.

"Euclides de Carli é um dos principais grileiros da fronteira agrícola do Brasil", disse Lindonjonson Gonçalves de Sousa, um promotor que investiga os negócios envolvendo terras de De Carli. "Não deveria ser surpresa para ninguém que ele figura de forma proeminente nos conflitos de terras da região."