Topo

Minoria na China, muçulmanos se irritam com restrições impostas pelo regime

Muçulmanos uigures em Kashgar, no extremo oeste da China - Adam Dean/The New York Times
Muçulmanos uigures em Kashgar, no extremo oeste da China Imagem: Adam Dean/The New York Times

Andrew Jacobs

Kashgar (China)

10/01/2016 06h00

Famílias separadas por uma onda de detenções. Mesquitas proibidas de anunciar os chamados para as orações. Restrições sobre a movimentação de trabalhadores que vêm devastando a agricultura local. E uma série de formas cada vez mais intrusivas de monitorar as comunicações dos cidadãos em busca de possíveis ameaças à segurança pública.

Uma viagem recente de dez dias pela região de Xinjiang, no extremo oeste da China, revelou uma sociedade enraivecida e temerosa por causa do governo. Este, alarmado com a insurgência que cresce lentamente e já custou centenas de vidas, lançou medidas sem precedentes para moldar o comportamento e as crenças dos 10 milhões de uigures da China, uma minoria muçulmana de língua turca que considera a região sua terra natal.

Por trás dessas políticas está a visão do governo de que endurecer a segurança e aumentar as restrições à prática do islamismo são a melhor forma de conter a onda de violência que incluiu um ataque numa mina de carvão em setembro que matou dezenas de pessoas a facadas.

As medidas de segurança ficam evidentes para os viajantes, obrigados a parar nos inúmeros postos de verificação que provocam lentidão no tráfego das rodovias dessa região acidentada de desertos e picos nevados.

Quando soldados fortemente armados vasculham o porta-malas dos carros e examinam as carteiras de identidade, às vezes pedem que motoristas e passageiros uigures entreguem seus celulares para que a polícia possa procurar conteúdo ou softwares considerados ameaças à segurança pública.

Além de vídeos jihadistas, a polícia verifica se os telefones têm Skype ou WhatsApp, aplicativos populares entre aqueles que se comunicam com amigos e parentes fora da China, e softwares que permitem que os usuários acessem sites bloqueados.

“Todos nós nos tornamos suspeitos de terrorismo”, disse um estudante de engenharia de 23 anos. Ele contou que foi preso numa noite, em novembro, depois de a polícia encontrar mensagens que ele havia trocado com um amigo na Turquia. “Hoje em dia, até receber telefonemas do exterior é suficiente para justificar uma visita da segurança de Estado.”

Aqui em Kashgar, lendário entreposto da Rota da Seda perto da fronteira da China com o Paquistão e o Afeganistão, as autoridades proibiram as mesquitas de anunciar o chamado para oração, obrigando os muezins a gritar a invocação cinco vezes por dia de cima de telhados por toda a cidade. A nova regra complementa as políticas de longa data que proíbem aulas de religião após a escola e a entrada de crianças menores de 18 anos nas mesquitas. A instalação de câmeras de vídeo na entrada das mesquitas nos últimos meses tornou difícil ignorar essas regras.

A sudeste de Kashgar, lojistas da cidade de Hotan ficaram revoltados com uma decisão do governo de proibir duas dezenas de nomes considerados tipicamente muçulmanos, obrigando os pais a mudarem o nome dos filhos sob pena de não poder matriculá-los nas escolas, de acordo com moradores locais e a polícia.

Ao norte, em Turpan, um oásis fértil famoso por suas uvas, o proprietário de um vinhedo reclamou das novas restrições que impedem os migrantes uigures de viajar para a região para trabalhar na colheita, deixando toneladas de frutas secando nas videiras.

E mais ao norte, em Ghulja, uma cidade etnicamente diversa perto da fronteira do Cazaquistão, com um histórico de tensões, alguns jovens formados e desempregados reclamaram da repressão ao uso de barba para os homens e véu para as mulheres. Aqueles que ignoram as regras às vezes são presos, disseram moradores.

“Eu mesmo não sou religioso, mas obrigar nossas mulheres a tirarem o lenço da cabeça é uma afronta à dignidade delas e deixa muitas pessoas irritadas”, disse um dos homens, que, como outros entrevistados, pediu para permanecer anônimo por medo de ser punido pelas autoridades.

Outras medidas contribuem para a percepção generalizada de que a identidade uigur está sitiada. Grande parte das escolas passou usar o mandarim como língua principal para o ensino, em vez do uigur. E o governo começou a oferecer dinheiro e subsídios de habitação para incentivar o casamento entre uigures e integrantes da maioria étnica han, que migraram para a região em grande número.

A vigilância também aumentou. Desde 2014, os uigures que querem viajar para fora de suas cidades natais são obrigados a ter um cartão especial com os números de telefone do proprietário do imóvel onde vivem e da delegacia de polícia local. Muitos uigures se queixam de que esses “cartões de contatos de conveniência”, como são chamados, faz com que sejam vistoriados seletivamente.

“A capacidade do Estado de penetrar na sociedade uigur ficou cada vez mais sofisticada e intrusiva”, disse James Leibold, especialista em política étnica chinesa na Universidade La Trobe, em Melbourne, Austrália. “Embora estas novas medidas permitam que o partido elimine muitos problemas pela raiz, elas também promovem novas formas de alienação e violência que, em última análise, enfraquecem a legitimidade e o poder do partido.”

Depois que 43 pessoas foram mortas em ataques na capital regional, Urumqi, em 2014, Pequim começou uma “operação especial de repressão dura” que diz ter desmantelado quase 200 grupos terroristas e que resultou na execução de pelo menos 49 pessoas. A mídia estatal descreve os presos como suspeitos de terrorismo ou separatistas que querem a independência de Xinjiang, e atribui a violência recorrente na região a jihadistas influenciados ou dirigidos por agentes no exterior.

Ainda é questionável se o islamismo radical se enraizou entre muitos uigures, uma vez que a grande maioria deles faz parte de uma forma moderada de islamismo sunita. Mas os ataques terroristas recentes em Paris e o assassinato de um refém chinês na Síria em novembro pelo Estado Islâmico fizeram Pequim intensificar os esforços para situar sua batalha de pacificação de Xinjiang como parte da guerra global contra o extremismo religioso violento.

Especialistas de fora da China, no entanto, dizem que grande parte do derramamento de sangue na região é alimentado por ressentimentos locais, entre eles a discriminação contra os uigures no mercado de trabalho, a pobreza endêmica e uma crença generalizada de que o fluxo de migrantes han para a região faz parte de um plano do governo para diluir a identidade uigur.

“O que estamos vendo em Xinjiang é uma radicalização local agravada pelas políticas repressivas e pela tentativa de esvaziar a cultura uigur e suas práticas religiosas”, disse Nicholas Bequelin, diretor de Leste Asiático na Anistia Internacional.

A maioria dos uigures, especialmente os de maior escolaridade e da classe média, tem pouco interesse em confrontar Pequim, e não só porque tem medo. Abdul, 30, um vendedor de móveis que costuma viajar a trabalho por toda a China, disse que não apoia a independência de Xinjiang, citando a instabilidade social e a estagnação econômica que vê por toda a Ásia Central e Oriente Médio.

“Aqui na China, somos 56 minorias que vivem juntas em paz”, disse ele, repetindo a propaganda que cobre os outdoors de toda a região. Porém, mais tarde, enquanto almoçava carneiro e arroz perfumado, ele descreveu com raiva como a polícia, alertada pela recepção dos hotéis, quase sempre visita seu quarto em suas viagens de negócios.

“Eu sou chinês; isso é o que diz na minha carteira de identidade”, disse ele, levantando a voz com emoção. Mas esse mesmo documento também cita sua identidade étnica e suas características faciais --olhos claros e um nariz aquilino-- que o distinguem da maioria han que corresponde a 92% do país. “Às vezes eu fico confuso sobre o que realmente sou”, disse ele.

Então ele fez uma pausa, olhou por cima do ombro e se inclinou para frente. “Para ser honesto, nos dias de hoje, as políticas do governo me deixam tão angustiado que às vezes eu gostaria de não ser chinês.”