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Nobel da Paz se cala diante de 'extermínio' de minoria muçulmana em Mianmar

Nicholas Kristof

Em Sittwe (Mianmar)

18/01/2016 06h00

Em breve o mundo vai testemunhar algo fora do comum: uma adorada vencedora do Prêmio Nobel da Paz presidindo campos de concentração no século 21.

Aung San Suu Kyi, uma das verdadeiras heroínas do mundo atual, conquistou a democracia para seu país, que culminou em eleições históricas vencidas com ampla vantagem por seu partido em novembro. Como vencedora, Suu Kyi também herdou a pior limpeza étnica da qual você nunca ouviu falar, a destruição da minoria muçulmana rohingya de Mianmar.

Um estudo recente de Yale sugeriu que o abuso contra mais de um milhão de rohingyas pode se equiparar a um genocídio; no mínimo, um relatório confidencial da ONU para o Conselho de Segurança diz que a situação pode ser considerada de “crimes contra a humanidade segundo a lei penal internacional”.

No entanto, Suu Kyi parece querer dar continuidade a esta versão do apartheid em Mianmar. Agora ela é uma política, e oprimir a minoria rohingya é algo popular entre a maioria dos eleitores budistas.

Outro vencedor do Prêmio Nobel da Paz, o presidente Barack Obama, que tem enorme influência sobre Mianmar (e já visitou o país duas vezes desde sua reeleição em 2012), tampouco está mostrando muito interesse. Obama e Hillary Clinton ajudaram a atrair Mianmar para a democracia e para a órbita pró-ocidental --conquistas significativas-- e estragaria a festa denunciar os 67 acampamentos, quase campos de concentração, nos quais estão confinados muitos rohingya.

O que tudo isso significa em termos práticos é que Muhammad Karim foi morto aos 14 anos.

Muhammad vivia num campo de concentração gigante com dezenas de milhares de rohingya. O governo retirou a cidadania e a soberania dos rohingya ao longo dos anos, e eles não têm mais liberdade para circular livremente. Muhammad quis fugir de barco, pagando traficantes humanos para se juntar a uma maré de rohingyas que tentavam chegar à Malásia pelo mar. “Nós não queríamos deixar, porque era muito perigoso”, disse sua mãe, Sara Hatu.

Então Muhammad sofreu um arranhão no calcanhar. Ninguém deu muita atenção, mas logo ele teve problemas para abrir a mandíbula.

Ele aparentemente havia pegado tétano. Como a maioria das crianças no campo de concentração, ele não teve acesso a vacinas, nem mesmo a uma simples antitetânica.

Depois que ficou doente, os funcionários de saúde e a clínica local não puderam ajudá-lo. Por fim, sua mãe obteve permissão especial para que ele saísse do campo e fosse hospitalizado, mas já era tarde demais. “Depois de dois dias, o corpo dele voltou”, disse a mãe.

A 30 metros de seu barraco, outra família também está de luto. Bildar Begum, uma mulher de 20 anos de idade, contraiu hepatite A, de acordo com os vizinhos. A hepatite A normalmente não é fatal, mas ela também não conseguiu obter a assistência médica de que precisava e morreu no ano passado, deixando um filho de dois anos de idade, Hirol.

“Se ela não fosse rohingya, certamente ainda estaria viva, posso dizer isso com 100% de certeza”, disse o líder comunitário Enus Monir.

E agora Hirol está passando fome. Aos 28 meses, ele pesa apenas 8 kg. Ele está fora das tabelas de peso por idade da Organização Mundial da Saúde.

Algumas das famílias no campo têm economias consideráveis nos bancos em Sittwe, a poucos quilômetros dali. Mas como as poupanças foram congeladas desde 2012, elas não podem acessar suas contas bancárias para se alimentar.

A resposta mundial tem sido patética. Em parte porque Mianmar impede que grupos humanitários e jornalistas tenham acesso aos rohingya, de modo que eles são praticamente invisíveis.

A ONU não tem funcionado em Mianmar. Outro documento interno da organização compartilhado comigo (ambos fornecidos por uma pessoa que critica a passividade da ONU quanto à questão) alerta que os funcionários da equipe da ONU em Mianmar estão brigando uns com os outros, e levanta “a questão da possível cumplicidade da ONU em possíveis crimes contra a humanidade”.

Bravo para os grupos de defesa dos direitos humanos como a Human Rights Watch, Fortify Rights e United to End Genocide, que denunciaram a brutalidade contínua contra os rohingya. Parabéns para os grupos humanitários que aliviam o sofrimento onde o governo permite: numa ilha grande na qual cheguei de barco, os Médicos Sem Fronteiras e a Save the Children fornecem saúde e educação.

No entanto, grupos de ajuda foram impedidos em muitas áreas, e a destruição sistemática dos rohingya continua sendo uma das catástrofes de direitos humanos mais negligenciadas do século 21.

O governo de Mianmar não está apenas oprimindo indivíduos; ele também está tentando erradicar o povo rohingya enquanto grupo étnico, alegando que ele não existe. As autoridades não usam a palavra rohingya e afirmam que eles são apenas imigrantes ilegais de Bangladesh (isto é absurdo; há documentos históricos referindo-se aos rohingya). Em novembro, o governo prendeu cinco homens simplesmente por terem impresso um calendário que fazia referência aos rohingya como grupo étnico.

Suu Kyi evita até mesmo dizer “rohingya”. A Embaixada dos EUA em Mianmar também parece se esquivar da palavra em suas declarações oficiais, uma capitulação humilhante.

“O governo Obama poderia definitivamente fazer muito mais”, diz Matthew Smith da Fortify Rights, uma organização de direitos humanos com foco em Mianmar. Isso inclui apoiar uma investigação internacional e pressionar Mianmar de forma pública e privada para tomar medidas para devolver a cidadania e a livre movimentação aos rohingya, bem como garantir que grupos de ajuda humanitária possam prestar assistência. Outros políticos também têm ficado em silêncio; a questão mal foi abordada na campanha presidencial dos EUA.

Muita coisa tem dado certo em Mianmar nos últimos anos, especialmente a ascensão da democracia. Mas essa mesma ascensão também fortaleceu a demagogia racista e xenofóbica, tornando os problemas dos rohingya mais difíceis de resolver. Nas eleições recentes de Mianmar, o partido de Suu Kyi se recusou a lançar um único candidato muçulmano.

Suu Kyi é considerada por muitos birmaneses como conciliadora demais em relação aos rohingya, porque ela permanece em silêncio em vez de denunciá-los continuamente. Mas para aqueles que a admiraram profundamente durante anos, é doloroso vê-la sacrificar os princípios em nome da conveniência política.

Defensores de Minamar e de Suu Kyi observam que o país tem muitos problemas; eles veem os rohingya como mais um infortúnio numa nação com uma ampla gama deles. As prioridades, na opinião deles, são o desenvolvimento econômico, a democracia e o fim de muitos conflitos locais do país, e eles dizem que é falta de visão se concentrar nos problemas de um grupo étnico num país com tantos desafios.

No entanto, para mim, há algo especialmente horripilante no fato de um governo perseguir um grupo étnico até a destruição de forma deliberada, prendendo seus integrantes em campos de concentração e negando-lhes meio de vida, educação e assistência médica. Quando as crianças morrem em campos de concentração, após serem confinadas por causa de sua etnia, isso não é só mais um problema causado pela pobreza global. É um crime contra a humanidade, e combatê-lo é responsabilidade de toda a humanidade.