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Água contaminada em Flint (EUA) ameaça especialmente as crianças

Menina brinca com boneca em banho improvisado com água de garrafa em Flint - Brittany Greeson/The New York Times
Menina brinca com boneca em banho improvisado com água de garrafa em Flint Imagem: Brittany Greeson/The New York Times

Roni Caryn Rabin

Em Flint (Michigan)

13/04/2016 06h00

Shanice Ollie está grávida de 18 semanas de seu terceiro filho, por isso, não pode se arriscar. Não importa o que os funcionários do município digam, ela não vai beber, cozinhar, lavar a louça ou tomar banho com “água de chumbo”, que é como as pessoas aqui estão se referindo à água entregue em suas casas.

“Eles dizem que não tem problema tomar banho com essa água, e que é boa para lavar louça e roupas, mas não acredito”, conta Shanice, 31, apontando para sua cozinha bagunçada, onde caixas de garrafas de água estão empilhadas e três sacos de lixo gigantes transbordam com garrafas vazias para reciclagem. “Eles souberam por um ano inteiro e não fizeram nada. Não posso me arriscar.”

Apesar de a crise da água ter se tornado um desastre de saúde pública para todos em Flint, ela apresenta um desafio particularmente assustador para mulheres grávidas e pais de crianças pequenas, que absorvem mais chumbo do que os adultos e cujos cérebros e sistemas nervosos em desenvolvimento são especialmente vulneráveis a seus efeitos. Seis meses depois que as famílias descobriram que o suprimento de água dessa comunidade pobre estava bastante contaminado com chumbo, a crise continua a exercer uma pressão desgastante diária na vida das famílias.

Os bombeiros locais estocam água, mas os moradores precisam buscá-la de carro e guardá-la em casa todos os dias ou a cada dois dias. As famílias usam grandes quantidade de água engarrafada: quatro pessoas podem facilmente acabar com uma caixa de 40 garrafas de meio litro em um período de 24 horas –apenas para beber e cozinhar. Apesar de os oficiais de saúde dizerem que a água é segura para o banho, para lavar roupas e louças, muitas famílias não confiam no conselho.

Shanice treinou seus filhos, Kingston, de seis anos, e Jase, de quatro, a tomar banhos de esponja usando água engarrafada e esquentada no micro-ondas – não dá mais para brincar na banheira. Eles também precisam usar água engarrafada para escovar os dentes. Depois do jantar, ela esvazia dezenas de garrafas em uma panela que esquenta no fogão para lavar a louça. Nos finais de semana, ela e o marido levam as crianças e a roupa suja até a casa dos pais de Shanice em Lansing para tomar banho e lavá-las.

“É como viver em um país do terceiro mundo aqui nos Estados Unidos. Estou revoltada. Mas o que posso fazer? Você precisa continuar vivendo”, afirma enquanto lava o liquidificador usado para fazer os sucos do café da manhã. “Lá se vão três garrafas de água.”

Mesmo antes da crise da água, criar filhos saudáveis e mantê-los longe do perigo não era fácil em uma cidade onde o salário médio familiar é menos de US$ 25 mil por ano e a taxa de crimes violentos está entre as maiores do país. Muitas famílias moram em ruas onde a cada três ou quatro casas uma está fechada, e em vários shoppings, a única loja aberta é a de bebidas alcoólicas.

As crianças aqui começam a vida com uma desvantagem – um em cada sete bebês nasce antes do tempo, e o chumbo pode aumentar as taxas de nascimentos prematuros e baixo peso. Os números de formandos no ensino médio são pequenos na cidade, e menos de 12% dos moradores têm nível superior.

Água contaminada em Flint - Brittany Greeson/The New York Times - Brittany Greeson/The New York Times
Para evitar contaminação, Shanice cozinha e lava louça com água engarrafada em Flint
Imagem: Brittany Greeson/The New York Times
E, no final do ano passado, os funcionários do departamento de saúde disseram aos moradores para parar de beber a água porque continha altos níveis de chumbo, uma neurotoxina que pode ter um efeito devastador na saúde geral e na cognição.

Oficiais de saúde estão pedindo aos pais para que testem o nível de chumbo no sangue de seus filhos e reforcem suas dietas com alimentos ricos em cálcio, ferro e vitamina C, que podem atenuar a absorção da substância. Mas os testes sanguíneos medem apenas a exposição dos últimos 30 dias, não a carga que o corpo já acumulou nos ossos, tecidos moles e no cérebro, explica o doutor Carl R. Baum, professor de Pediatria da Escola de Medicina de Yale e especialistas em exposição ao chumbo.

Os médicos possuem poucos conselhos sobre o mal já feito: não há uma maneira de reverter os efeitos do chumbo, que afeta todos os sistemas de órgãos. As crianças com menos de seis anos são consideradas mais vulneráveis, afirma Baum.

A doutora Jeanne Conry, obstetra e ginecologista especializada nas exposições ambientais ocorridas durante a gravidez, explica: “Nossas diretrizes não foram escritas para esse nível de exposição”. Com tantas incógnitas, os pesquisadores estão ansiosos para estudar Flint, afirmou.

Algumas pessoas querem se mudar, mas a maioria não consegue deixar os aluguéis baratos e as redes de apoio, e aqueles que possuem casa sabem que provavelmente não vão ser capazes de vendê-las. Muitos também precisam enfrentam outros problemas vindos da pobreza, como deficiências, falta de emprego e abuso de substâncias prejudiciais.

Cristina e Adam Murphy, que têm cinco filhos, entre eles um recém-nascido, descobriram que sua água estava muito contaminada com chumbo quando um de seus cachorros ficou doente e uma cadela teve um filhote que nasceu morto. Os testes na água revelaram níveis de chumbo de milhares de partes por bilhão, muito acima do limite permitido de 15 partes por bilhão. Agora, o casal está preocupado com os efeitos nos membros da família. Um filho de Murphy de um casamento anterior tem síndrome alcoólica fetal, e a menina de três anos do casal é muito irritadiça. Uma garota mais velha sente severas dores abdominais, que podem ser causadas pelo chumbo. Outro está com dificuldades na escola pela primeira vez.

O próprio Murphy, 36, que é mecânico em uma fábrica, não consegue trabalhar há um mês por sentir fraqueza e cansaço sem explicação. Ele perdeu vários dentes, está deixando as coisas caírem e se preocupa com sua memória. Foi examinado para descobrir se tem esclerose amiotrófica lateral, ou ALS (na sigla em inglês), que também tem sido associada à exposição ao chumbo.

E Cristina, como muitos pais na região, passa um tempo enorme esvaziando garrafas de água em panelas e tigelas, onde pode ser fervida ou esquentada no micro-ondas para banho, lavar a louça e cozinhar para cinco crianças menores de dez anos. “É como viver nos anos 1800”, compara ela.

No outono passado, Magen Baker e seu marido se mudaram de Flint para um subúrbio com um sistema de água diferente, mas continuam preocupados com seus filhos, entre eles uma criança de dez meses que foi hospitalizada duas vezes com pneumonia e uma filha mais velha que tem chegado em casa com avisos dos professores sobre arroubos de mau comportamento e com problemas para fazer a lição de casa.

Magen, 30, que administra um salão na J.C. Penney, amamentou seu bebê, mas bebeu e cozinhou com a água contaminada de Flint enquanto estava grávida e agora se preocupa com a exposição da criança ao chumbo, que pode cruzar a placenta e foi encontrado no leite materno.

Depois que Luke Waid, 29, soldador aeroespacial demitido, descobriu que os testes em sua bebê, Sophia, mostraram altos níveis de chumbo, um gestor da assistência pública ameaçou ligar para o Serviço de Proteção à Criança e tirar a menina de casa por causa da exposição à substância. No fim do ano passado, eles descobriram que era a água.

Agora, Waid está processando o Estado e os funcionários da cidade na esperança de ter, ao menos, os custos médicos de sua filha cobertos. “Venho de uma família pobre. Paguei meus impostos e muito dinheiro pela água, e eles envenenaram minha filha com ela.”