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Como o AK-47 e o AR-15 se tornaram os fuzis preferidos dos assassinos em massa

C.J. Chivers*

06/08/2016 06h00

É o mesmo enredo repetidas vezes. Um atirador solitário ou um pequeno grupo de assassinos com fuzis comete crimes espetaculares que chamam a atenção do mundo.

A lista remonta a décadas: a morte dos atletas israelenses nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972; a tomada de uma escola em Beslan, Rússia, em 2004; os ataques em Mumbai, Índia, em 2008; o ataque a um shopping center em Nairóbi, Quênia, em 2013; a morte de mais de 100 pessoas em Paris, em 2015.

Com frequência os fuzis são variantes do AK-47, a arma de fogo mais abundante do mundo, um fuzil de assalto barato e simples de usar de origem soviética que permite que poucas pessoas matem dezenas e ameacem centenas, e combatam em pé de igualdade soldados modernos e forças policiais.

Nos últimos anos, também há descendentes do AR-15, a resposta das forças armadas americanas à proliferação do Kalashnikov. Versões semiautomáticas do AR-15 foram usadas por simpatizantes do Estado Islâmico em San Bernardino, Califórnia, em 2015, e um Mini-14 e MCX, fuzis que disparam o mesmo cartucho que o AR-15 e são concorrentes deste por fatia de mercado, foram usados nos tiroteios em massa na Noruega, em 2011, e em Orlando, Flórida, em junho.

Nas mãos de terroristas, fuzis de tipo militar são repetidamente usados para matanças rápidas em grande escala. Como foi que o Kalashnikov, uma tecnologia disruptiva que tomou o mundo há quase três gerações e ainda mantém um papel exacerbado na violência organizada, se tornou tamanho amplificador de mal e fúria? De que formas ele também levou o AR-15 e seus concorrentes a tamanha proeminência?

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Imagem: Attila Futaki/The New York Times

Um produto da Guerra Fria

As respostas remontam aos anos imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, quando a União Soviética estava desenvolvendo múltiplas armas para múltiplos papéis. Enquanto os cientistas trabalhavam em armas nucleares que congelariam fronteiras sob o temor de uma guerra total, armeiros e engenheiros iniciaram uma concorrência para a criação de uma arma convencional, um fuzil, que combinaria a ferocidade do fogo rápido das metralhadoras com a portabilidade das armas mais leves. A arma seria uma cópia conceitual da sturmgewehr da Alemanha nazista.

Em avaliações que se seguiram, o sargento Mikhail T. Kalashnikov, um veterano de guerra de tanques, foi creditado como autor de um protótipo para um fuzil de poder médio capaz de fogo automático e semiautomático.

O AK-47, com um alcance eficaz de além do comprimento de campos de futebol, foi aceito em 1947. Poucos anos depois, uma atualização mais leve e de manufatura mais fácil, o AKM, entrou em produção em massa, a caminho de se tornar o fuzil padrão de quase todas as forças terrestres comunistas.

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Imagem: Attila Futaki/The New York Times

Descobrindo seu apelo

A linha Kalashnikov era mais curta e mais leve do que a dos fuzis tradicionais, de fabricação barata, feito para ter durabilidade e contando com confiabilidade extraordinária. Com poucas partes móveis e um design que tornava sua desmontagem e montagem quase intuitiva, seus aspectos básicos podiam ser dominados em pouco tempo.

Os cartuchos eram menores do que os cartuchos dos fuzis tradicionais, o que permitia a um combatente com um Kalashnikov carregar mais munição e ser mais mortífero. Cartuchos de poder intermediário também significavam que tinha pouco coice, permitindo aos novatos aprenderem a atirar com relativa facilidade.

As características físicas do Kalashnikov por si só não explicam sua proeminência. A vasta escala da produção do fuzil e da munição nas imensas fábricas de armas elevaram o Kalashnikov ao status de um dos objetos mais prontamente identificáveis do mundo.

A produção soviética teve início nos anos 40, antes de expandir aos países do Pacto de Varsóvia e à China, Coreia do Norte e além. Dezenas de milhões de fuzis foram produzidos em economias planejadas, independente de serem necessários ou não.

Uma constelação de fábricas de munição assegurava pronto fornecimento. Mais forças nacionais adotaram as armas e também deram início à produção de cartuchos. Nos anos 70, o Exército Soviético introduziu um novo modelo, o AK-47, que disparava com um cartucho menor e mais rápido. Milhões de fuzis Kalashnikov mais velhos se tornaram oficialmente obsoletos, o que os liberou para comércio global. Somadas, uma série de decisões industriais nas economias planejadas criou as condições para a arma estar presente em quase todos os lugares.

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Imagem: Attila Futaki/The New York Times

Guerra de guerrilha

A disseminação mudou a guerra moderna. À medida que os governos comunistas repassavam os Kalashnikovs para aliados e terceiros, os rifles assumiram um papel inesperado: niveladores de campo de batalha.

O Vietnã deu início. A África foi colonizada por pequenos destacamentos de soldados europeus usando metralhadoras contra forças locais maiores, mas que careciam de acesso a armas equivalentes. No Vietnã, grande parte dessa vantagem desapareceu. Guerrilheiros armados com Kalashnikovs lutavam de igual para igual contra soldados de infantaria de uma superpotência. Unidades expedicionárias modernas, enfrentando fogo automático de fuzis baratos empunhados por camponeses, encontraram um adversário à altura no combate à curta distância. Com frequência suas ambições eram freadas.

A superioridade do Kalashnikov diante do M-14 americano na guerra na selva no Vietnã fez com que Robert S. McNamara, o secretário de Defesa na época, pressionasse o Pentágono a apressar a produção de um novo fuzil de assalto americano, o AR-15, que se tornou conhecido como M-16. A decisão elevaria os fuzis de assalto à sua atual posição como armas de fogo padrão das forças armadas de todo o mundo.

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Imagem: Attila Futaki/The New York Times

Nas mãos de terroristas

Após sua eficácia ter sido comprovada no Vietnã, o Kalashnikov ganhou sua associação indelével como arma preferida dos terroristas.

Tomadores de reféns empunhando Kalashnikovs escalaram a cerca da Vila Olímpica em Munique, em 1972, e pegaram membros da equipe israelense. O fuzil escapou de sua coleira. Ele deixou de ser uma ferramenta do Estado ou da ideologia comunista. A era do terrorismo Kalashnikov tinha começado, com o mundo assistindo ao vivo pela TV.

Instrução sobre uso do fuzil passou a se tornar padrão no treinamento de guerra irregular, incluindo nos campos palestinos. Sua disseminação prosseguiu em tamanho grau que os adversários do Kremlin começaram a procurar pelas armas. Autoridades de inteligência americanas e paquistanesas treinavam combatentes islâmicos a usar o Kalashnikov na guerra para expulsar as forças soviéticas do Afeganistão, nos anos 80.

Criado para fortalecer Estados autoritários, o Kalashnikov ganhou credibilidade fora da lei, se transformando em símbolo de revolta, contragolpe, crime e jihad (guerra santa).

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Imagem: Attila Futaki/The New York Times

Um fuzil para todas as idades

A simplicidade do Kalashnikov, seu tamanho compacto e coice reduzido se combinaram para torná-la uma arma incrivelmente adequada para crianças-soldados.

Em muitas guerras, os comandantes forneciam os fuzis para adolescentes, e ocasionalmente para combatentes que nem haviam chegado à adolescência, que apesar de sua pequena estatura são capazes de usar a arma e carregar grande quantidade de munição.

Os Kalashnikovs são as armas de fogo primárias para formações inteiras de crianças soldados, incluindo o notório Exército de Resistência do Senhor de Joseph Kony, na África, e a arma é rotineiramente usada por crianças para reforçar forças rebeldes ou irregulares em guerras por todo o mundo.

O Estado Islâmico, seguindo esse padrão, transformou imagens de suas crianças soldados posando com Kalashnikovs como parte de sua rotina de propaganda. Ele não é o único. Imagens de crianças-soldados com Kalashnikovs se tornaram comuns em muitos conflitos há décadas.

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Imagem: Attila Futaki/The New York Times

A resposta americana

Propenso a emperrar, o M-16 teve uma introdução desastrosa na Guerra do Vietnã. Mas a maioria de suas falhas originais foi corrigida e ele assegurou seu lugar nos arsenais americanos. De lá para cá, a padronização da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte, uma aliança militar ocidental) levou a Europa a adotar seus próprios fuzis de assalto, disseminando essa classe de armas por todo o mundo não comunista.

O Kalashnikov alimentou uma corrida armamentista. Nos anos 80, o AK-47 e o AR-15, assim como seus muitos descendentes, se transformaram em um par global.

As leis americanas em grande parte limitavam a posse por civis dos AR-15 e seus concorrentes apenas a modelos de fogo semiautomático. Mas à medida que ganhavam popularidade junto a veteranos, defensores do direito de posse de arma, sobrevivencialistas (pessoas que defendem estar muito bem preparadas para situações de emergências) e, ocasionalmente, criminosos e terroristas, seu lugar no crime cresceu, mesmo enquanto a produção do Kalashnikov diminuía.

EUA têm, em média, uma arma de fogo por habitante

AFP

Variantes do AR-15 foram usados em tiroteios em massa em um cinema em Aurora, Colorado, e na escola primária de Sandy Hook em 2012, assim como por simpatizantes do Estado Islâmico em San Bernardino. Um MCX, um fuzil militar projetado para as Forças Especiais, mas disponível no formato semiautomático, foi usado em Orlando, em junho.

Kalashnikovs semiautomáticos também fazem parte da rotina terrível. O atirador que matou cinco crianças em idade escolar em Stockton, Califórnia, em 1989, usou um Kalashnikov chinês. Seu crime motivou uma proibição de armas de assalto em nível estadual e federal. O veterano do Exército que matou cinco policiais em Dallas, em julho, também usou um Kalashnikov semiautomático.

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Imagem: Attila Futaki/The New York Times

Conflitos modernos

Nos anos 80 e 90, com o colapso do comunismo, a economia de mercado acolheu de braços abertos os velhos bens de Stálin. Os governos sucessores continuaram a descarregar imensos estoques, inundando ainda mais o mercado.

Entre os principais transferidores de Kalashnikovs está o Pentágono, que os comprou aos milhares para forças que o representavam no Afeganistão e no Iraque. O Pentágono também distribuiu dezenas de milhares de M-16, assim como a carabina M-4 mais curta baseada no design do AR-15, para as mesmas forças. Muitas dessas forças fracassaram, com seus fuzis indo parar nas mãos dos inimigos ou nos mercados, tornando ainda mais dessas armas disponíveis para mãos perigosas.

Hoje, os Kalashnikovs e variantes do AR-15 continuam sendo as armas mais comumente vistas nos campos de batalha modernos, com seu uso sendo central em quase toda guerra. Eles são itens básicos de insurreição e terrorismo, assim como praticamente fundamentais na rotina terrível dos tiroteios em massa. O Estado Islâmico matou muito mais pessoas na Europa com balas do que com bombas, e controla território em múltiplos países em parte por meio de seus estoques de fuzis militares.

Os governos têm feito pouco para deter a disseminação dessa classe de armas. Com frequência, como no caso dos Estados Unidos, eles contribuem para ela. Atos de crime, terror e opressão com Kalashnikovs e descendentes do AR-15, suportados por civis sob fogo, estão gravados em nosso tempo. Não há um fim à vista.

Comércio mundial de armas representa US$ 85 bilhões por ano

AFP

* C.J. Chivers é um repórter do "The New York Times", ex-fuzileiro e autor de "The Gun" (A Arma, em tradução livre, não lançado no Brasil), uma história da linha Kalashnikov e seus efeitos sobre a segurança e guerras