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A era da esquerda na América Latina está acabando? Pergunte ao Brasil e à Colombia

2.out.2016 - O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vota em escola de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo - Nelson Almeida/AFP
2.out.2016 - O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vota em escola de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo Imagem: Nelson Almeida/AFP

Simon Romero

No Rio de Janeiro

04/10/2016 11h06

Não foi um dia de comemorações para a esquerda política na América Latina.

A Colômbia rejeitou um acordo de paz com os rebeldes marxistas no domingo (2), dando uma vitória muito pública ao ex-presidente conservador que fez uma campanha apaixonada contra ele. No mesmo dia, os eleitores brasileiros deram uma derrota retumbante ao partido de esquerda que controlou o país, derrubando-o nas eleições municipais.

Foi apenas mais um sinal da mudança à direita na América Latina. Em menos de um ano, os eleitores bloquearam o movimento de esquerda na Argentina e elegeram um ex-banqueiro de investimentos como presidente do Peru, enquanto o Congresso do Brasil decidiu o afastamento da presidente esquerdista.

"Falando simplesmente, os conservadores estão em ascensão na América Latina", disse Matías Spektor, professor de relações internacionais na Fundação Getúlio Vargas.

Muitos fatores alimentam essa tendência. A queda acentuada dos preços das matérias-primas perturbou o crescimento econômico no continente e o apoio que ele propiciava aos governos de esquerda. O poder das mega igrejas evangélicas está se expandindo, e elas confrontam as políticas liberais e canalizam a insatisfação generalizada com a situação.

Mas em todos os países os resultados são os mesmos: os líderes que defendem políticas pró-mercado estão eclipsando os esquerdistas que detiveram o poder nas Américas na década anterior. Presidentes outrora poderosos como Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil, e Cristina Kirchner, da Argentina, hoje enfrentam inquéritos por corrupção.

Mas os analistas políticos advertem que a tendência não envolve necessariamente uma rejeição total às políticas que conquistaram admiração e votos para os governos de esquerda nos anos anteriores. Por exemplo, Michel Temer e Mauricio Macri, os líderes do Brasil e da Argentina, declararam apoio à manutenção de programas populares contra a pobreza.

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O novo presidente do Peru, Pedro Pablo Kuczynski, contou com uma aliança com a esquerda para derrotar sua rival, Keiko Fujimori, filha de Alberto Fujimori, o ex-presidente que hoje está preso.

Do mesmo modo, a votação na Colômbia sobre o acordo de paz ofereceu um exemplo de como a política está se tornando imprevisível em partes da América Latina. Líderes de toda a região --de diversas origens ideológicas-- tinham apoiado o acordo, que foi forjado entre o presidente Juan Manuel Santos e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).

Os colombianos recusaram o acordo principalmente porque o consideraram brando demais com as Farc, ao permitir que a maioria dos combatentes saia imune. Mas o resultado também mostrou que os eleitores estavam prontos para rejeitar a oferta do establishment político.

"Os eleitores desafiarem a situação vigente é algo raro na Colômbia", disse Michael Shifter, presidente do Diálogo Interamericano, um grupo de pensadores políticos em Washington. "Encaixa-se em um padrão que pode ser identificado na Argentina, no Brasil, na Venezuela, no México e em outros países."

Líderes de toda a América Latina estão prestando muita atenção na alteração do clima político em seus países. No Chile, a presidente Michelle Bachelet voltou ao cargo em uma vitória arrasadora em 2013, com uma plataforma de redução da desigualdade.

Mas Bachelet mudou de rumo diante da desaceleração da economia e de um escândalo de corrupção envolvendo sua família e nomeou um ministro da Economia respeitado pelo meio empresarial. O orçamento de seu governo para 2017 dá prioridade à tradição chilena de prudência fiscal, enquanto contém os gastos em estímulos.

No Brasil, país de 206 milhões de habitantes, a metade da população da América do Sul, a mudança à direita se desdobrou contra um fundo de crescente divisão política.

Os defensores da ex-presidente Dilma Rousseff afirmam que seu afastamento equivaleu a um golpe, opinião que pesou sobre a legitimidade de Temer, seu ex-vice-presidente que se rebelou contra ela. Os candidatos do partido dele, o PMDB, também foram majoritariamente derrotados nas eleições para prefeito no domingo nas maiores cidades brasileiras.

O PSDB, que evoluiu para um agrupamento mais conservador, que hoje abriga a coalizão de Temer, marcou grandes ganhos. Um membro do partido, João Doria, um ex-apresentador de TV que demitia os participantes no ar, saiu vitorioso na corrida para a Prefeitura de São Paulo, a maior cidade do Brasil.

Alguns na região veem paralelos com a votação do "Brexit" no Reino Unido, que decidiu pela saída da União Europeia, ou a possibilidade de que Donald Trump, que também foi o astro de um reality show na TV em que demitia participantes, ganhe a eleição presidencial nos EUA.

O voto na Colômbia refletiu uma mudança "de realismo mágico para realismo trágico", disse no Twitter o escritor Héctor Abad Faciolince, referindo-se às narrativas míticas de autores latino-americanos como Gabriel García Márquez. "Agora só falta que Trump ganhe."

A mudança à direita foi contida em algumas partes da região. A oposição conquistou o controle da Assembleia Nacional da Venezuela no início deste ano, mas o presidente de esquerda do país, Nicolás Maduro, conseguiu adiar um referendo para tirá-lo do cargo, apesar do colapso econômico.

Na Bolívia, o governo de esquerda do presidente Evo Morales conquistou aplausos do Fundo Monetário Internacional (FMI) pela condução da economia. A direção do banco central da Bolívia disse em setembro que espera um aumento do PIB de 5% este ano, o que situa sua economia entre as de crescimento mais rápido na América Latina.

Mas, em um discurso recente salpicado de referências a Marx e Lenin, até o vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera, reconheceu a influência intermitente da esquerda na região.

"Enfrentamos um ponto de inflexão histórico na região; alguns falam em retrocesso", disse Linera, comparando a situação atual com períodos anteriores de ressurgência conservadora na América Latina. "Devemos reaprender o que aprendemos nos anos 1980 e 90, quando tudo estava contra nós."

Enquanto os líderes de esquerda recolhem os pedaços em partes do continente, seu dilema hoje se parece com o dos políticos conservadores que eles tanto lutaram para derrubar.

"Podemos ver a mudança como uma variante latino-americana do florescente namoro do Ocidente com movimentos antiestablishment", escreveu em um ensaio recente Mohamed El-Erian, principal assessor econômico da Allianz, a gigante de serviços financeiros alemã. "Por enquanto, os partidos de direita e as agendas políticas são os principais beneficiários da desilusão econômica e social na região."

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