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Ela veio passear nas pirâmides do Egito, mas acabou ficando para cuidar dos cavalos feridos

Cavalos em tratamento na clínica veterinária de Jill Barton, ao sul das pirâmides de Gizé, no Egito - David Degner/The New York Times
Cavalos em tratamento na clínica veterinária de Jill Barton, ao sul das pirâmides de Gizé, no Egito Imagem: David Degner/The New York Times

Diaa Hadid e Nour Youssef

Em Gizé (Egito)

07/11/2016 06h01

Em um estábulo abafado à sombra das Pirâmides, um garanhão jazia ao chão, com uma pata quebrada em um ângulo estranho apesar do gesso que a envolvia.

O proprietário, Farag Abu Ghoneim, rondava o animal enquanto ele era cuidado por uma enfermeira australiana conhecida aqui por seu jeito com cavalos, e sua defesa ferrenha de animais em sofrimento.

O garanhão vinha sentindo dores há uma semana, depois de ter sido chutado por uma égua.

“Ele não vai ficar melhor”, disse a enfermeira, Jill Barton, que veio para as Grandes Pirâmides de Gizé em 2013, mas ficou para ajudar cavalos de carga  maltratados em Nazlet el-Samman, uma favela em ruínas nas proximidades. “Você precisa deixá-lo descansar.”

Barton enfrenta uma resistência forte de uma comunidade empobrecida que durante muito tempo viu os cavalos e os jumentos como animais de trabalho, com poucos sentimentos pela dor deles.

Ela costuma defender a eutanásia, ou, como ela chama, levar os animais “para o outro lado do arco-íris”. Os homens querem que eles trabalhem até a morte.

Depois que ela deu a Abu Ghoneim sua recomendação, seu rosto assumiu um ar sombrio.

“Só Deus pode tirar a vida”, ele disse.

Durante gerações, os homens de Nazlet el-Samman ganharam a vida oferecendo cavalos —e camelos— a turistas para dar voltas em torno das Grandes Pirâmides. Ou, como Abu Ghoneim, eles alugam seus cavalos para fazer aparições, todos decorados, em barulhentos casamentos de rua.

Os homens recebem o equivalente a US$ 7 (R$ 22) por um passeio de uma hora em torno das Pirâmides e US$ 20 por uma dança de casamento de 20 minutos. No entanto, não importa o quanto os homens precisem dos animais, eles os fazem trabalhar até morrerem de cansaço. As carcaças são então jogadas sem cerimônia nas dunas das proximidades.

Depois dos levantes da Primavera Árabe em 2011, o turismo no Egito despencou, com 3,3 milhões de turistas até o momento este ano, em comparação com os 14,7 milhões de 2010. Cavalos passaram fome, e camelos foram vendidos pela carne.

Juntamente com um veterinário do Hospital Veterinário Brooke, que fez visitas semanas gratuitas durante anos, uma série de grupos de ativistas da proteção animal correram para ajudar.

Um grupo alimentou os cavalos gratuitamente até ficarem sem dinheiro. Ahmed al-Shurbaji, 34, que administra um abrigo para cães local, às vezes aparece com um veterinário para cuidar de ferimentos leves.

E tem Barton, 56, que se tornou uma jillaroo, ou ajudante de fazenda, aos 15 anos de idade na Austrália.

Em uma visita recente a Nazlet el-Samman com Barton, tive a sensação de que ela quase não havia mudado desde 1931, quando Dorothy Brooke, uma inglesa que vivia no Cairo, escreveu uma carta a um jornal britânico solicitando fundos para eutanasiar cavalos da Primeira Guerra Mundial que foram vendidos a egípcios.

13.out.2016 - Cavalos em torno das pirâmides de Gizé, no Egito - David Degner/The New York Times - David Degner/The New York Times
Cavalos em torno das pirâmides de Gizé, no Egito; negócios decaíram após a Primavera Árabe
Imagem: David Degner/The New York Times

“A maioria deles passam dias desgraçados de labuta com donos pobres demais para alimentá-los, que estão eles mesmos acostumados demais com as dificuldades para se sensibilizarem em qualquer grau que seja com o sofrimento de seus animais”, escreveu Brooke, que depois criou a Brooke, uma entidade de caridade internacional.

Havia cavalos para todos os lados na favela, amarrados em árvores e seus cochos enfileirados como se fossem estacionamentos equestres. Muitos deles estavam macilentos, com as costelas aparecendo. Um potro passou galopando por mim e fungou para uma mulher. Os homens pegavam seus filhos em carroças puxadas por cavalos e carregavam compras para casa.

Quando começou a correr a informação de que havia turistas nas Pirâmides, alguns dos homens pegaram seus cavalos e foram para lá.

Recentemente, Barton deu a Mamdouh Abu Basha acolchoados coloridos para enrolar em volta das correntes que envolvem o focinho de seus cavalos, criando correias. Ela elogiou a pelagem saudável e brilhante deles.

Salem Abu Basha perguntou a Barton se ela poderia cuidar de sua égua cinza, que estava com uma infecção na pata. A égua não estava respondendo a um cataplasma de iogurte e amido, um tratamento faraônico que, insistiu, costumava funcionar.

O animal foi levado às pressas para a clínica de Barton, onde havia um cavalo deitado no chão. Barton queria sacrificá-lo, mas os donos o pegaram de volta alguns dias depois e o puseram para trabalhar. Havia jumentos reunidos em uma pastagem perto das pirâmides de Abusir, um dos vários agrupamentos de pirâmides que pontuam a área.

Um adolescente queria saber se Barton poderia curar seu jumento, cujo casco havia caído devido a uma infecção. Ela se ofereceu para ficar com ele por seis meses, mas o jovem Gomaa recusou. Ele precisava do jumento para puxar sua carroça, que ele usava para recolher plástico reciclável por US$ 5 ao dia.

“Eu já o deixei descansando por um mês”, disse Gomaa, levando embora o jumento manco.

Então dois homens apareceram, trazendo uma égua com uma ferida onde uma sela havia esfolado sua pele.

“Doctora!”, eles chamaram.

O rosto de Barton endureceu quando ela reconheceu a égua pelos cortes sangrentos em seu corpo. Ela disse que as feridas eram da pata de um garanhão, porque ela havia visto os homens forçando a égua a acasalar durante a noite. Estaria ela sendo castigada?

Em um inglês imperfeito, um dos homens explicou: “Ela faz coisa ruim, então a gente precisa ensinar ela.”

“Ensinar o quê?”, perguntou Barton. “Ela se comporta mal e você manda o garanhão cobri-la? É assim que você a ensina como não se comportar mal?”

Shurbaji, que administra o abrigo para cães, disse que a abordagem de Barton não era inteiramente bem vista. “Ela é muito dura e áspera com as pessoas”, ele disse. “Embora precisem da ajuda dela, ninguém gosta de procurá-la.”

Barton disse que quando ela chegou aqui pela primeira vez, ela foi voluntária em um abrigo de animais, mas percebeu que eles negligenciavam os cavalos e jumentos que diziam estar salvando. Então ela usou suas economias e doações para abrir o Egypt Equine Aid. A clínica gratuita no subúrbio desértico do Cairo tratou cerca de 300 cavalos e jumentos em dois anos.

Foi por vocação que ela permaneceu no Egito. Ela havia decidido muito tempo atrás que gastaria suas economias com os animais.

Também era “uma dívida”, disse Barton, que acreditava que os cavalos das pirâmides descendiam em parte dos walers australianos. A raça foi deixada para trás por tropas britânicas depois da Primeira Guerra Mundial, o último conflito a usar equinos em grande escala.

A maioria deles foi vendida para o Exército britânico na Índia, e os soldados que estavam de partida atiraram no resto, de acordo com o Memorial de Guerra Australiano. Mas pelo menos centenas deles foram vendidos para os egípcios, de acordo com a carta que Brooke escreveu em 1931.

Barton disse que alguns devem ter sobrevivido, apontando para a cabeça curvada de um cavalo que ela estava tratando, algo que seria típico de um waler, segundo ela.

13.out.2016 - Jill Barton olha exames de raio-x de um cavalo com a perna quebrada em sua clínica e tenta convencer o dono a sacrificá-lo, no Egito - David Degner/The New York Times - David Degner/The New York Times
Jill Barton olha exames de raio-x de um cavalo com a perna quebrada em sua clínica e tenta convencer o dono a sacrificá-lo
Imagem: David Degner/The New York Times

E agora em Nazlet el-Samman, Barton teve de se segurar ao falar com Abu Ghoneim.

O cavalo provia a única renda para a família estendida de 12 pessoas de Abu Ghoneim, cerca de US$ 100 por semana em casamentos egípcios. Ele vendeu seu estábulo de 36 cavalos anos antes, quando o turismo despencou. Esse seria seu último animal.

Mas com o cavalo se contorcendo, Abu Ghoneim concordou em eutanasiá-lo.

No dia seguinte, ele mudou de ideia, depois de sonhar que seu cavalo havia se recuperado. Enquanto tomava um chá, um “médico” ligou e mandou que ele não matasse o cavalo. Mais um sinal, ele disse com um sorriso.

Mas não era um veterinário. Era Shurbaji, que administra o abrigo para cães. Ele era contra eutanasiar animais e havia ouvido falar no plano de Barton.

Mais tarde, quando Shurbaji viu quão ruim era o estado do cavalo, ele mudou de ideia. Tarde demais. Barton levou mais uma semana tentando persuadir Abu Ghoneim a finalmente deixar seu cavalo ir para o outro lado do arco-íris.

“Agora acabou”, ele disse depois. “Não tem mais festas. Não tem mais nada.”

Ele disse que queria comprar outro cavalo em breve.

“Com sorte, amanhã”, ele disse esperançoso.